A noite em que todas as luzes estiveram acesas

Escrevo na terça-feira, são 10h23 da manhã, os miúdos dormem ainda. Há poucos minutos abri-lhes um pouco a janela e fechei a porta, estão arejados, com sorte terei tempo para acabar o que vos quero dizer. 

Portugal perdeu com a Alemanha e merecia ter sido derrotado pelos Estados Unidos; os que escuto em cafés e táxis não acreditam que possa acontecer algum milagre contra o Gana, a melhor selecção africana – nestas matérias transcendentes mantenho-me prudentemente calado, nunca se sabe. Mas sou mais um português coberto de opiniões: Miguel Veloso em vez de William Carvalho? Paulo Bento tão carregado com o mundo às costas, tão enfadado com as perguntas dos jornalistas, tão saloio na forma grave como trata os assuntos do futebol, como se estivesse a decidir o futuro de milhões de vidas? Sim, também sou português.

Só que apesar de todas as frustrações (e salvaguardando a hipótese de podermos despachar o Gana com cinco ou seis batatas), este mundial será a competição onde vi famílias inteiras a descer em direcção ao Marquês de Pombal, com bandeiras, pinturas e filhos, para ver a selecção nacional a vingar a honra do país. Faltavam 30 minutos para o jogo começar e, apesar de ser tarde, centenas de nós desciam a rua onde estava. E no caminho curto de regresso a casa, um bocadinho nervoso como todos, passei por prédios em que as luzes estavam acesas em todas as janelas. Depois da meia-noite, ainda a ganharmos por 1-0, voltei a espreitar e as luzes lá estiveram até perto da uma da manhã.

Ao escrever das luzes em cada casa, das bandeiras nas janelas, a minha memória tornou ao meu amigo Pedro Múrias. O que se entusiasmou com Scolari e as suas doses não homeopáticas de patriotismo, falava sempre com o coração, que o haveria de trair fulminantemente. Dele me lembrei nesse curto caminho para casa. Partiu há uns anos, a igreja esteve cheia. Vencera um cancro e os últimos exames tinham-lhe resgatado o sorriso que se ausentara nos anos de luta. Combinámos festejar como nos velhos tempos, à grande. E pendente ficou um almoço com os miúdos, os meus e a dele, Matilde. Nunca o fizemos. Não despachámos copos pela noite, não juntámos os miúdos. Morreu poucos dias depois da maravilhosa notícia, um enfarte agudo. Era o mais humilde de todos os meus íntimos amigos. Maravilhoso, poético, sonhador. Não era deste mundo, disse-lhe. E continuo a dizer-lhe. Por isso compreendi e não o chorei. Tinha mesmo de ir.

Se não tivesse sido chamado sei que perguntaria: por que não tratamos o futebol como os alemães ou os holandeses, que abrem os treinos e tratam o desporto com a seriedade própria, muita é claro, mas não a seriedade de Churchill antes de pedir aos compatriotas ‘sangue, suor e lágrimas’ no horror da Segunda Grande Guerra?

Na tarde do jogo com os americanos vi à porta de uma cervejaria na Avenida de Roma uma imensa fila para comprar marisco vivo. As pessoas tinham o entusiasmo dos que aguardam lugar para entrar no Rock in Rio ou dos que compram bilhete para uma partida impossível de ser perdida. Não levem a sério, é um desabafo e adoro o molho das sapateiras. Comprar marisco vivo é um desporto civilizado para sádicos. Esfaquear um porco, degolar uma galinha ou matar um boi não é a mesma coisa – aí é assunto de valentia ou tradição. Com santolas e lagostas a história é outra: é trazê-las para casa, queimá-las vivas em lume brando e ouvi-las a dilacerar numa agonia que parece interminável. Comê-las num restaurante é indolor, em casa uma prova que se atingiu um certo grau de maturidade para passar a uma qualquer prova seguinte. Mas alguém as tortura num restaurante, estarão a pensar… Claro. Porém, tal nunca foi negociável na história humana. Há sempre alguém a fazer o trabalho sujo. 

Já na cama, quase duas da manhã, mal disposto e saturado de bola, voltei a pensar nas santolas em agonia, pensamento tão a despropósito que, para sorte minha, e apesar da azia, me transportou da realidade. Mas quase a adormecer um grito na rua ameaçou o que eu já começara a construir num outro mundo. Pus-me à escuta. Um homem e uma mulher discutiam. Contei a passagem dos carros como se fossem as ovelhas da infância. Uns minutos nisto até que, sem fazer por isso, deixei de me lembrar do que sou. Se não voltasse a acordar daria por muito pouco ou por nada. Felizmente aqui estou. A pensar na discussão daqueles dois e dos carros que me atravessaram na madrugada – a pensar que enquanto durmo, enquanto dormimos, há um mundo que corre lá fora. Um mundo sem nós.

Agarremo-nos então às coisas boas. Às luzes acesas em todas as casas, o mais importante do meu mundial. O resto é lúdico, bola a rolar e uma equipa a tentar marcar golos e a não sofrer. Não é importante? É importante, muito. Mas cada coisa em seu sítio, não é? Por falar nisso, vou acordá-los. Meio-dia já é mais do que suficiente para os libertar dos sonhos. Ou os voltar a aprisionar na realidade. Nunca saberei, nunca saberemos.