Ah, o respeito…

Os fumos de polémica em torno da Lei da Cópia Privada, agora entregue pela Secretaria de Estado da Cultura ao Parlamento, resumem-se ao genérico “Não pagamos!” – urro de egoísmo que, nesta sociedade ‘em rede’ de malhas trôpegas e costas largas, passa por acto de cidadania.

É uma evidência que sem autores não haveria música, nem filmes, nem qualquer forma de criação.

Outra evidência é que, por muito que apreciem o ponto de vista da nuvem, os criadores não são anjos: precisam de comer, dormir, vestir-se – e até, nalguns casos, criar filhos (um abuso de criação, claro; ninguém os obriga, o mundo não está para esses optimismos, mas dá-lhes para a utopia).

Ora música, livros e filmes circulam em cada vez maior número de suportes e com um controlo de utilização progressivamente mais difícil.

O que a lei propõe é alargar a taxa existente desde 1998 na compra de alguns suportes destas obras – cd, dvd e cassetes – a dispositivos digitais tais como tablets, telemóveis e discos rígidos.

A taxa será aplicada aos distribuidores – que ameaçam, todavia, incluir esse custo no preço final do dispositivo.

Para meu espanto (e não só meu: o produtor e editor de música David Ferreira exprimiu esse mesmo espanto no último Prós e Contras da RTP), alguns habitantes das redes sociais insurgem-se, não contra a riquíssima indústria electrónica que pretende onerar os seus consumidores, mas contra a existência da taxa. Pelo caminho, vão dizendo que esta oposição à lei em nada pretende atingir os autores, pelos quais têm “o maior respeito”, etc.

Estou fartinha de gente que enche a boca com a palavra “respeito” e na verdade não respeita ninguém, a não ser aquilo que entende ser o seu próprio interesse (e que no fundo, no fundo, nem sequer o é; mas o tempo está pouco favorável a profundidades e este espaço é curto).

Tivesse eu um euro por cada vez que ouço invocar em vão o Santo Nome do Respeito, e poderia ficar o resto da vida sossegada a escrever a minha Guerra e Paz, para a oferecer magnanimamente à posteridade, lugar sempre mais simpático do que a contemporaneidade.

No mesmo debate, o secretário de Estado da Cultura sublinhou, e bem, que a defesa da cultura tem de começar, realisticamente, pelo pagamento devido aos autores.

Infelizmente, neste Renascimento da Era Global não se encontram Médicis dispostos a sustentar os actuais Botticelli ou Pico della Mirandola. O presidente da Sociedade Portuguesa de Autores acrescentou que parte das receitas dessa taxa – em falta para os novos suportes desde há mais de uma década – é aplicada na viabilização de projectos que, de outra forma, não teriam meios para se realizar.

Ninguém estranha que médicos, advogados, carpinteiros ou mecânicos sejam pagos pelo seu trabalho. Mas muita gente pede textos, conferências e livros de borla aos escritores. E cada vez mais gente acha natural e 'democrático' descarregar ilegalmente livros, filmes e músicas da internet.

Esta lei da cópia privada será acompanhada por uma outra contra a pirataria – ambas são urgentes, sob pena de ficarmos reduzidos à esplendorosa liberdade do vazio. Claro que haverá sempre as selfies para o preencher. Ou vídeos de animais domésticos e de mártires do terrorismo.