Marina, a predestinada

Na zona Oeste de São Paulo, sabe-se pouco sobre os hábitos de Marina Silva, a candidata do Partido Socialista Brasileiro (PSB) que tem andado a calcorrear o país atrás de votos. Aqui, a casa é de passagem. Serve apenas para a ambientalista descansar de cada vez que pernoita na capital paulista, quando não está em…

Marina, a predestinada

Em 2010, o nome da então senadora ganhou projecção nacional ao apresentar-se nas eleições pelo Partido Verde em defesa do Meio Ambiente e da Amazónia e ficou debaixo de olho do país e do mundo.

O discurso do “ícone do movimento ambientalista”, como lhe chamou o The New York Times, sensibilizou de tal forma os brasileiros que 19,33% dos eleitores lhe confiaram o seu voto obrigatório, adiando assim para a segunda volta a vitória da sucessora de Lula da Silva. A história pessoal da mulher que arrisca ser a primeira negra (afro-indígena) a liderar o Brasil, um país onde o racismo é “estrutural e institucionalizado”, segundo relatório da ONU publicado na semana passada, ajudou a construir a narrativa dos que hoje a olham como uma predestinada ao mais alto cargo público por eleição do Brasil. Estão 11 candidatos a jogo.

Nascida no seio de uma família de seringueiros (os trabalhadores que extraem o látex da árvore-da-borracha) pobres, num estado da região Norte do Brasil que faz fronteira com a Bolívia e o Peru, Marina Silva foi educada segundo os princípios da Igreja Católica. Ainda jovem manifestou o desejo de ser freira e tornou-se noviça. Saiu do convento e trabalhou como empregada doméstica. Mas é o trabalho como seringueira, aos 10 anos, e a mata que lhe moldam a personalidade e a trajectória: mesmo quando saía, era ali que voltava. Abraçou a defesa da maior floresta do mundo, quando se iniciava o desmantelamento de partes da Amazónia. Lutou ao lado da população contra a expulsão dos índios da floresta do seu habitat. Uma luta que havia de ser determinante para a sua consciência cívica, consolidada na licenciatura em História feita já na idade adulta.

A vida num estado longe dos centros de poder obrigou-a a um trabalho primeiro estadual, nos órgãos de poder local da capital do Acre, Rio Branco, como vereadora e como deputada estadual, até conseguir levar o discurso da sustentabilidade e da defesa do meio ambiente a Brasília. Em 1994, com 36 anos, tornou-se a senadora mais jovem do país no Distrito Federal. Reeleita em 2002, um ano depois o Presidente Lula da Silva convida-a para ministra e oferece-lhe a pasta do Meio Ambiente.

Durante cinco anos, conviveu na Esplanada dos Três Poderes com Dilma, que foi ministra das Minas e Energia e da Casa Civil. A relação entre as duas mulheres que disputam o Brasil na sombra de Lula da Silva foi cordial e não se conhecem divergências públicas, apesar de as prioridades não coincidirem. Em 2008, Marina viria a romper com o PT, onde se filiou em 1986, e com Lula por considerar que o Executivo, ainda a meio do segundo mandato, estava desgastado e não teria força para declarar guerra aos interesses de sectores poderosos, como o do agronegócio, com o qual mantém divergências profundas.

A morte que a poupou por 'providência divina'

Maria Osmarina Marina da Silva Vaz de Lima, nasceu no Rio Branco há 56 anos. É casada e tem quatro filhos, dois de um primeiro casamento e duas do segundo e actual marido. Descendente de portugueses e africanos, a presidenciável esteve várias vezes à beira da morte. Ultrapassou três hepatites, cinco malárias e uma leishmaniose. Chorou a morte de familiares motivadas pelas mesmas doenças, entre eles a mãe, quando tinha 15 anos, e duas irmãs dos oito que teve. Enfrenta ainda hoje as consequências de uma contaminação por mercúrio, o que a obriga a cuidados de alimentação e de saúde seguidos à risca.

A sobrevivência a boletins clínicos que se revelavam fatais conduziram Marina a uma devoção religiosa pública e intensa. Uma notícia recente da Folha de São Paulo dava conta de que a candidata toma decisões políticas com base na abertura aleatória da Bíblia, num método que foi chamado de 'roleta bíblica'. Poucas horas depois, e em plena campanha eleitoral, a evangélica clarificou que todas as decisões que toma, políticas ou não, são “racionais” e que a Bíblia é uma “fonte de inspiração” e uma “referência” como a “arte” ou a “literatura”. Foi o recurso que encontrou para tentar afastar a imagem de fundamentalista com que aparecia rotulada em algumas notícias e artigos de opinião.

O contacto com a Igreja Evangélica surgiu em 1995. No regresso de uma viagem aos Estados Unidos para um tratamento de saúde sem sucesso, a então senadora procurou ajuda num médico. Era a última esperança, aos 36 anos, depois de ter tentado o avanço científico da vizinha América. Mas o médico acabara por indicar uma solução que não passava pela ciência: o que Marina precisava era de um milagre. Foi então que sugeriu um pastor que se dizia detentor do dom do Espírito Santo. Marina contactou-o e ouviu uma oração, através da qual passou a identificar o mal: alguém que estava no grupo que lhe fazia oposição no Senado. Em 2004, assume que acabara por se tornar missionária da Assembleia de Deus.

Desde então, a religiosidade, que sempre guiara a sua trajectória pessoal, passou a marcar presença no seu discurso público. Foi assim quando considerou um “milagre da educação” ter chegado onde chegou depois de aprender a ler apenas aos 16 anos e quando admitiu estar confiante “em Deus e na Justiça” perante a iminência, no final do ano passado, de ver rejeitada pela Justiça Eleitoral a inscrição da Rede Sustentabilidade como partido para concorrer às eleições de 5 de Outubro e antes de firmar um acordo com Eduardo Campos para ser candidata a sua vice na lista do PSB. A 13 de Agosto, ao desembarcar em Recife para participar no funeral de Campos, explicou que foi por “providência divina” que não aceitou o convite do então candidato para voar com ele no jacto que caiu em Santos e que vitimou mortalmente os sete passageiros que seguiam a bordo.

De aparência frágil, Marina procura na religião uma fortaleza e mantém-se fiel à imagem das evangélicas. O cabelo é arrumado num coque. A imprensa, porém, não deixou de notar que nos debates eleitorais o coque estava mais encorpado do que é costume. A candidata está mais sofisticada no vestir e na pose. Apesar de manter a saia comprida a tapar os saltos e a camisa ou o blazer, tem optado por tecidos mais requintados. Marina, que já foi comparada a Barack Obama – pela questão racial – está mais sorridente do que a ambientalista que apareceu há quatros anos. Há dias, numa entrevista ao Estado de São Paulo, admitiu que faz sessões de media training e que numa destas sessões ter-lhe-ão dito para evitar começar as respostas com “Em primeiro lugar, quero dizer…”. Não teve tempo para explicar o motivo.

Discurso turbinado pelas manifestações de Julho

À medida que se aproxima o dia em que os 143 milhões de eleitores vão às urnas, o Brasil procura respostas para a grande pergunta que domina a conversa nos botecos e nas filas das lotéricas, as casas da sorte: Marina vai ser a próxima Presidente? Só a 26 de Outubro, dia de uma muito provável segunda volta disputada entre a candidata por acidente e Dilma, é que se saberá qual das duas irá governar o país nos próximos quatro anos. Marina já disse que se vencer as eleições só cumpre um mandato. O mesmo é dizer que não se quer perpetuar no poder. Ainda assim, propõe uma reforma política que aumente de quatro para cinco os anos de mandato na Presidência da República.

Entre os que acreditam que a ambientalista vai impedir a reeleição da ainda Presidente do Brasil, critica-se o desgaste de 12 anos de governo PT, os escândalos de corrupção que assombraram as lideranças de Lula, como o 'mensalão', e de Dilma, como o 'petrolão', denunciado no início do mês. Junta-se-lhes o abrandamento da economia, que não cresce há dois semestres consecutivos. Do lado dos que não apostam um único real que seja na vitória da evangelista, faz-se fé na gratidão de milhões de eleitores ao contributo de Lula para a erradicação da pobreza e a confiança do ex-Presidente, que terminou o mandato com 80% de aprovação, na sua ex-ministra que se tenta manter no Palácio do Planalto.

À aura de heroína e de sobrevivente, Marina acresce a experiência como membro do governo popular de Lula da Silva, tendo também revelado a coragem para pôr termo a uma relação de 24 anos de luta conjunta (ainda jovem, fez campanha pelo ex-Presidente). Além disso, propõe uma terceira via para a política brasileira, turbinada pelas manifestações de Julho do ano passado, contra a organização do Mundial da FIFA e contra a degradação dos serviços públicos de Saúde e de Educação. “Marina agrega mais votos pelo que representa do ponto de vista simbólico (nova política e oposição aos partidos) do que pelas suas propostas programáticas”, explica ao SOL Rubens Figueiredo, cientista político.

A oposição há muito que vem acusando a candidata do PSB de ser uma âncora para devolver o poder ao PSDB, que tem em Aécio Neves o candidato que está atirado para terceiro lugar das intenções de voto e que, se as previsões se confirmarem, será o primeiro em 20 anos que não leva o partido à segunda volta. A estes, a candidata responde que a sua missão é tirar o PT e o PSDB do poder, mesmo sabendo que o apoio deste último partido para disputar a segunda volta das presidenciais pode ser determinante. Fernando Henrique Cardoso, ex-Presidente do Brasil e histórico do PSDB, já deixou o aviso ao candidato do seu partido em directo para as televisões: a disputa é com o PT e não com Marina Silva.

O choro e a colagem à imagem de Lula

No dia em que apresentou o seu programa, ao lado de Beto Albuquerque, candidato a vice, Marina puxou pela emoção. Disse que sabe o que é sofrer de preconceito, em resposta aos que duvidam da sua capacidade para governar, e recordou que Lula passou pelo mesmo: “Vi muita gente a desqualificar o Lula. Esqueceram muito rápido o que tivemos de passar para chegar onde chegámos. Se Lula era operário, eu sou a mulher que veio da floresta, do mundo real e não do mundo simbólico. O que estamos a fazer vai ser bom para todo o mundo”, disse a candidata.

Dias mais tarde, sentada no banco de trás do carro que a transportava de volta a um hotel no Rio de Janeiro depois de uma acção de campanha, lamentou, a chorar, os ataques de Dilma e de Lula e confessou sentir-se injustiçada quando é acusada de querer secundarizar o investimento no pré-sal do petróleo (de cujo retorno 10% é aplicado na Educação), e que a sua campanha é sustentada por banqueiros, numa referência a Neca Setúbal, herdeira do banco Itaú, que coordena o programa de governo da candidata, a única, de resto, a apresentar até agora o programa que será sufragado daqui a poucos dias.

“Sofri muito com as mentiras que o Collor dizia naquela época contra o Lula. O povo falava: 'Se o Lula ganhar, vai pegar minhas galinhas e repartir'. 'Se o Lula ganhar, vai trazer os sem-tecto para morar num dos dois quartos da minha casa”, lembrou a uma jornalista da Folha de São Paulo que a acompanhou na viagem. “Aquilo me dava um sofrimento tão profundo e a gente fazia de tudo para explicar que não era assim. Me vejo fazendo a mesma coisa agora”.

O momento que mais danos pode ter causado na campanha de Marina Silva foi precisamente o que decorreu da eliminação, em menos de 24 horas, do ponto  do seu programa que propunha a criminalização da homofobia e o apoio ao casamento entre pessoas do mesmo sexo. A comunidade evangélica, através das redes sociais, condenou as propostas e tratou logo de fazer saber que, se assim era, Marina não teria o apoio da igreja, onde estão 33% dos eleitores que professam uma proposta evangélica.

Silas Malafaia, um influente pastor da igreja seguida por Marina, e apoiante de Everaldo Dias Pereira, o pastor-candidato a Presidente do Brasil com o apoio do Partido Social Cristão, colocou a candidata em xeque: “Marina defende a ideologia do seu partido ou a sua fé? Quero aguardar o pronunciamento dela para me posicionar”. A candidata não tardou em clarificar: o casamento é entre pessoas de sexos diferentes e a união civil entre pessoas do mesmo sexo já está prevista na Constituição Brasileira. Sobre a criminalização da homofobia, a missionária da Assembleia de Deus recordou que há um diploma no Senado em fase de discussão que já prevê esta proposta mas pediu seriedade e clarificação sobre o seu conteúdo. O mesmo é dizer que não iria comprometer-se com a criminalição dos ataques contra homossexuais assentes no ódio e no preconceito.

A poucos dias das eleições, Marina Silva, a mulher que arrisca ser a primeira negra a liderar o Brasil, deixou claro que é simultaneamente uma candidata progressista e conservadora. E é talvez isso que tende a reunir à sua volta os descontentes com o curso da política brasileira nos últimos anos, numa verdadeira onda de apoio à sua candidatura. 75% dos brasileiros clamam por mudança no modus operandi da política no país, afectada por sucessivos escândalos de corrupção. Na rua onde a candidata dorme em São Paulo, há um pequeno templo de uma igreja concorrente da Assembleia de Deus. Lá dentro, Maria Isadora, do alto dos seus 55 anos, pede para não falar sobre política e campanha eleitoral, tamanha é a revolta e a descrença. Mas tem uma premonição que faz questão de partilhar: “Antes uma Presidente abençoada por Deus”. 

ricardo.rego@sol.pt