Passos Coelho: a surpresa

Podem ser feitas muitas críticas a Passos Coelho, mas há um defeito que não se lhe pode apontar: o de pôr os interesses do partido (ou os seus próprios) à frente dos interesses do país.

Se Passos Coelho peca, nesse aspecto, é pelo defeito contrário: por assumir culpas que não lhe cabem ou por ser demasiado transparente.

Ainda recentemente, Cavaco Silva lhe puxou as orelhas por ter dito que a resolução do BES poderia ter encargos ‘indirectos’ para os contribuintes, por via da CGD.

Cavaco classificou esta afirmação de “enorme disparate”, adiantando que isso seria o mesmo que dizer que, quando uma família não paga um empréstimo à Caixa, também seriam os contribuintes a arcar com o prejuízo.

Aqui, como noutros assuntos, Passos Coelho revelou excesso de zelo.

Quando outros tentam esconder alguns factos incómodos, ele assume-os, mesmo não lho cabendo fazer.

Passos tem sido assim desde o início do mandato.

Todas as suas supostas gafes resultaram de um excesso de transparência.

Quando disse que desejava ir “além da troika” – frase que tantos amargos de boca lhe tem causado – todos perceberam o que ele queria dizer: que o país tinha de fazer reformas para ter futuro, e que devia fazê-las por iniciativa própria, estabelecendo objectivos ambiciosos, e  não apenas por imposição dos credores.

Quando disse que o país tinha de “empobrecer”, também toda a gente percebeu o que ele procurava dizer: estando nós a gastar acima das nossas possibilidades, tínhamos de consumir menos e de viver com menos – ora, chama-se a isso ‘empobrecer’.

Quando afirmou que quem cai no desemprego não deve cruzar os braços, antes deve procurar todas as alternativas, inclusive a emigração, disse apenas o óbvio. Mas as pessoas não quiseram perceber.

Agora, depois de três anos de austeridade, muitos esperavam que Passos Coelho aproveitasse o ano eleitoral para piscar o olho aos contribuintes.

O seu parceiro de coligação, o CDS, pressionou-o até mais não  nesse sentido – e o próprio PSD gostaria de um orçamento eleitoralista.

Muitos admitiriam que Passos Coelho seguisse as pisadas de Sócrates em ano de eleições, quando este baixou o IVA e aumentou o funcionalismo público.

Mas Passos resistiu mais uma vez à tentação.

Fiel à sua célebre frase “Que se lixem as eleições”, fez o Orçamento que achou que devia ser feito e não o que queriam que fizesse.

É certo que subiu o défice de 2,5% para 2,7%, beneficiou alguns pensionistas e as famílias com filhos, devolveu como prometido 20% dos cortes aos funcionários públicos – mas o que deu de um lado tirou do outro, como na fiscalidade verde ou no fim das deduções ‘automáticas’ no IRS.

A oposição reconheceu, aliás, o carácter não eleitoralista deste Orçamento, ao dizer que é “mais do mesmo”.

Muitas  pessoas com quem falo, afectas ou desafectas à maioria, dizem-se “surpreendidas” com Passos Coelho.

Não esperavam um primeiro-ministro tão firme e determinado (alguns dizem “teimoso”), tão convicto e imune às pressões, tão empenhado em fazer o que julga que é preciso fazer e não aquilo que seria mais fácil.

Nas minhas aulas de política defendo há muitos anos que esta é a forma correcta de fazer política.

E digo que ela compensa sempre – mesmo que seja a prazo.

Os exemplos são inúmeros: toda a gente ainda hoje se lembra de Margaret Thatcher, afastada do poder por criar um imposto impopular, mas alguém sabe o nome do seu sucessor, que aplicou políticas muito mais populares?

Ernâni Lopes é outro caso: chamaram-lhe “o ministro que mete medo”, mas hoje é apontado como um exemplo a seguir.

Pode dizer-se que Passos Coelho prometeu muita coisa antes das eleições que depois não cumpriu.

É inteiramente verdade.

Mas não é menos verdade que, quando as eleições se realizaram, já estava fechado o acordo com a troika e havia um caderno de encargos para cumprir.

Ninguém ignorava, portanto, o que era preciso fazer.

Alguns socialistas também acusam Passos Coelho de ser o causador do resgate, ao chumbar o PEC 4; é a célebre ‘narrativa’ de José Sócrates.

Não nos esqueçamos, porém, que o PSD tinha deixado passar os PEC 1, 2 e 3; e se tivesse chumbado o primeiro (que era o Orçamento do Estado) teria logo feito cair o Governo.

Na situação inversa, seria isto, possivelmente, o que os socialistas fariam.

Não nos esqueçamos que António Costa (e o próprio Sócrates) atacaram António José Seguro por não ter votado contra o primeiro Orçamento do Governo de Passos Coelho.

O que é muitíssimo irónico: os mesmos que queriam que Seguro chumbasse o primeiro OE do PSD criticam Passos Coelho por ter chumbado o quarto PEC!

 Na política, a coerência é uma palavra vã e o cinismo é a regra.