Onde se escondem as lágrimas que não chorámos?

Há uma nova categoria de seres humanos. Não são melhores nem piores, existem em função dos desejos de quem paga as revistas, de quem vê os programas de televisão ou de quem escolhe nas redes sociais. São os novos proletários, escravos ignorantes da sua condição, homens e mulheres famosos apenas por serem famosos, não por…

É o que me ocorre ao ter passado pela Casa dos Segredos. Ou pelas páginas sociais onde mulheres e homens vivem uns meses num mundo cor-de-rosa até serem substituídos por outras mulheres e outros homens dispostos ao mesmo. Há quem sobreviva mais tempo. Há até quem aguente uma vida inteira nas páginas, honra lhes seja feita. Até o vazio pode ser absoluto e gerar vencedores.

Não é um fenómeno deste tempo, apenas o amplificámos. No princípio do século XX, numa madrugada agitada, ao chegar a um hotel num pequeno lugar nos Alpes, um artista pintou todas as paredes do quarto. O dono, na manhã seguinte, compreensivelmente furioso, chamou a Polícia e mandou pintar de novo. Duas demãos. O pequeno delinquente pagou uma multa e foi repreendido, fez-se justiça. Chamava-se Picasso. Quanto à vítima, pouco a dizer. Há pessoas com quem Deus brinca quando está entediado.

Adorava ter sido Picasso por um dia. Só para saber como é, como se é, como se pensa. Colocar-me numa outra pele é um delírio assumido. Se tenho algum dinheiro a mais, riqueza de quinze dias, porto-me como pobre. Mas se ando aos caídos, sorrio de barriga cheia. Não o faço por bipolaridade, sim por convicção. Por acreditar que o mundo seria melhor se os ricos tivessem a humildade dos pobres e os pobres a confiança dos ricos.

No essencial creio na ideia de igualdade, é a minha marca de água. Ainda mais do que na ideia de liberdade ou de fraternidade. O que não implica que não precisemos das três aragens, vértices decisivos num tempo em que tanto é descartável e se descarta 'porque sim'.

 Lembram-se certamente dos guardanapos de pano…

Eram usados também entre as famílias pobres, ao contrário dos de papel. Hoje, sem termos dado conta, limpamo-nos ao que podemos descartar a seguir, um pouco como tudo o resto. Talvez possamos começar por aqui. Fazer regressar às mesas guardanapos com os quais possamos ter uma relação duradoura. Que tal? Vamos fazê-lo? Tentarei comprá-los, não passa de hoje.

Outra vez o regresso à infância, talvez sim. Talvez seja isso. Visto deste lugar, a infância, a minha e a sua, é um país longínquo. Um país onde a água fresca sabe ao que nos fomos esquecendo e o bife com batatas fritas é feito por uma avó imortal. Tudo é solene neste lugar onde somos o que deixámos de ser, um lugar encantado, o nosso segredo. E posso dizer-lhe um segredo que tranquei a sete chaves? Noutros tempos, de criança, procurava nos livros de anatomia o lugar das lágrimas guardadas. Nunca encontrei, nunca ninguém me respondeu. Perguntava por uma coisa, respondiam-me com outra: nasciam nas pálpebras superiores e eram produzidas pelas glândulas lacrimais. Deixei de insistir. Sabemos como nascem, mas não onde se escondem as que não chorámos, as que ficam em atraso. As que um dia libertamos sem saber bem porquê. Sem motivo aparente. Talvez apenas para esvaziarmos um depósito de lágrimas que não chorámos quando devíamos.

Isto é mais importante do que parece, não é poesia e efabulação, porventura envelhecimento. E nessa matéria não posso concordar com as definições mais comuns: o envelhecimento não é a aproximação acelerada ou a chegada à velhice. Envelhecer é a consciência de que o tempo passa e nós com ele. Ninguém vai para novo, diz bem o povo. Acrescentaria da impossibilidade de encontrarmos uma única pessoa que não esteja a envelhecer. Uns mais rápidos do que outros, mas isso é outra coisa. Isso é a pressa de chegar.

E depois há o prosaico, o óbvio, as pernas cansadas, a dificuldade de nos baixarmos. A certa altura deixamos de sair tanto como antes. Envelhecer também é isso, sentir que existe um peso que antes nem pressentíamos – mas, ainda assim, é outra falsa questão… Porque a energia tem menos poder do que a vontade e esta, quando motivada pelo verdadeiro amor ou pela amizade, é soberana. O problema é quando a noite é apenas noite, sem mais nada. Aí sim, desistimos. Porque nos recordamos, os que tiveram sorte de amar em todas as suas formas, que a noite traz consigo um raio de manhã e um fio de horizonte da tarde. Essa é a noite. E o cansaço não pode nada contra ela.