Perder o sexo

A notícia saiu na imprensa, perdida no meio de um amontoado de outras sem grande interesse. Informava que “Chelsea Attonley, de 30 anos, nasceu homem com o nome de Matthew. E durante a sua infância debateu-se com vários problemas de personalidade, não se sentindo bem na sua pele”. A palavra ‘pele’ era aqui usada em…

E a notícia concluía: “Isto porque Chelsea está a sentir na pele o quanto custa ser mulher. Diz-se farta de usar saltos altos e de ter que se maquilhar todos os dias, querendo voltar a ser um homem sete anos depois. E explica: 'É exaustivo ter que pôr maquilhagem todos os dias e usar saltos altos. E mesmo quando o faço não me sinto ainda uma mulher verdadeira. Sofro de depressão e ansiedade como resultado das hormonas. Apercebi-me que mais valia ter aceitado ser quem era'“.

Guardei o recorte, que me interessou até pelo facto de já ter escrito há anos sobre o assunto.

Sucede que, não muito tempo depois de ler esta notícia, ouvi na enfermaria de um hospital de Lisboa, onde fui visitar um familiar, uma conversa entre dois enfermeiros que versava sobre o mesmo tema. Dizia um que, na última sexta-feira, tivera um dia terrível. “Quando pensava que até poderia começar mais cedo o fim-de-semana, fui chamado para uma operação de mudança de sexo”. “De homem para mulher?”, perguntou o colega. “Não, de mulher para homem”, respondeu o primeiro. E pôs-se então a descrever, com minúcia clínica, os vários momentos e pormenores da complicadíssima operação e daquilo que se lhe seguiria. Desde “a intervenção na vagina para implantação de um micro pénis”, a uma nova operação “para aumentar o volume” e, finalmente, a possibilidade de “usar uma prótese”. Eu já estava impressionado e enjoado com a conversa, mas o homem prosseguia o relato: “Só que o gajo – ou a gaja – começou a ter dores de noite e chamou por mim”. O enfermeiro iniciou então um segundo episódio sobre o período pós-operatório, também com abundantes pormenores científicos, referindo uma infecção e os cuidados que foi necessário ter para a estabilizar e salvar o doente.

Confirmei – se tal fosse preciso – até que ponto estas operações são terríveis, tal como terrível deve ser a adaptação do indivíduo ao novo sexo. 

Partindo exactamente desta evidência, quando abordei a questão há alguns anos fiz a seguinte pergunta: por que é que, em vez de se sujeitarem à brutalidade de uma operação para mudar de sexo, essas pessoas não apostam tudo num tratamento psicológico para se adaptarem ao sexo que têm?

Está provado que certas mulheres e certos homens não se sentem bem na sua pele – e acham que resolverão os seus problemas mudando de sexo. Mas quase sempre isso revela-se uma cruel ilusão. Primeiro, porque a insatisfação que sentem tem frequentemente outra raiz e não fica resolvida com a troca; depois, porque a transformação não é completa, ou seja, as mulheres não ficam inteiramente homens, nem os homens inteiramente mulheres. 

Na prática, após mudarem de sexo as pessoas, não são carne nem peixe. Perdem o sexo que têm mas não ganham outro por inteiro, pois faltam-lhes algumas valências desse outro sexo. E isso acarreta muitos problemas psíquicos e de desadaptação. 

O facto de alguém não se sentir em sintonia com o sexo com que nasceu é, evidentemente, um distúrbio psicológico, uma patologia – pois o normal é uma pessoa ter uma personalidade correspondente ao seu género (homem ou mulher). 

Ora, tratando-se de um distúrbio psicológico, por que razão estas pessoas não se sujeitam a um tratamento psicológico (ou psiquiátrico) intenso que ponha a cabeça em consonância com o corpo – em vez de tentarem pôr o corpo em consonância com a cabeça? Os médicos não deveriam fazer tudo, tentar todos meios, para evitar que os pacientes  se sujeitem a uma operação complicadíssima, arriscadíssima e de resultados duvidosos, pois a troca de sexo nunca é conseguida a 100%? 

O facto é que, por muito hábeis que os médicos sejam, a natureza é muito difícil de enganar – e uma mudança de sexo a 100% é uma miragem.

Como se sabe, porém, a legislação tem caminhado no sentido contrário, facilitando as mudanças de sexo. Em vez de se esgotarem todos os meios psicológicos e de persuasão existentes, antes se chegar à violência de tentar com o bisturi transformar um homem em mulher e vice-versa, tem-se vindo a simplificar o processo legal que permite essa troca. E o Estado paga-a, custando cada intervenção em Portugal entre 40 e 50 mil euros. 

Mas estamos no tempo da vigência do politicamente correcto – e tudo o que seja estranho, que contrarie a lógica, o senso comum, que desafie uma certa normalidade, é aquilo que atrai as pessoas e as entusiasma. Um homem que tenha a 'coragem' de se transformar em mulher não é uma aberração – é um herói. 

O problema, depois, é se se arrepende – como sucedeu com Chelsea Attonley. “Mais valia ter aceitado ser quem era”, diz ela agora. Mas é tarde. Era este, entretanto, o caminho que a medicina deveria explorar a fundo: ajudar as pessoas que se sentem mal com o seu sexo a 'aceitarem-se como são'. Em vez de 'receitarem' uma mudança de sexo, os médicos deviam desaconselhá-la liminarmente, alertar para os seus perigos, frustrações e insucessos, ajudando o paciente a aceitar o sexo que tem. Mostrando-lhes que, se perderem esse, no fundo não voltarão a ter mais nenhum.

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