Um Papa sem papas na língua

A mensagem de Natal do Papa Francisco é um terramoto político, num mundo governado por contabilistas e amadores.

Identificando frontalmente as 15 doenças que afectam a hierarquia da Igreja Católica, não se esqueceu de ampliar o diagnóstico cirúrgico a outras comunidades: os problemas da Igreja são os problemas de todas as instituições de poder, e o poder existe a múltiplos níveis, pelo que ninguém pode fazer de conta que esse tema não lhe diz respeito.

Entre as doenças referidas pelo Papa, contam-se a burocracite crónica, o “terrorismo da má-língua” e da intriga, que classificou como “doença dos cobardes”, o “Alzheimer espiritual”, o carreirismo e o oportunismo, bem como a cupidez e o apego excessivo a bens materiais.

A frontalidade tem, no Vaticano como no resto do mundo, um escasso clube de fãs, pelo que o som dos aplausos a este discurso papal foi quase inaudível: os cardeais aos quais Francisco puxava as orelhas acusaram o toque prendendo o burrinho, não às estacas da caverna de Belém onde nasceu Jesus, mas uns aos outros.

Não sei quanto tempo vai durar este líder político revolucionário e inspirador; temo que lhe façam a cama, como fizeram ao próprio Cristo – o homem que veio explicar-nos que não há ofício mais belo nem mais trágico do que o de tentar fazer do mundo um lugar melhor.

Mas Francisco não teme a mesquinhez que conduz ao crime, porque não teme a morte. Nem sequer se presume indispensável – embora, neste momento, claramente o seja. Lembrou que os cemitérios estão cheios de indispensáveis, e de gananciosos de que já ninguém se lembra.

Haverá quem diga que à Igreja não cabem mensagens políticas – mas para que nasceram as religiões, senão para intervir na sociedade e transformá-la? (aliás muitas vezes de um modo catastrófico, como atesta hoje o radicalismo islâmico).

O que era Jesus Cristo, senão um agitador de massas?

Este Papa já conseguiu, por exemplo, que os Estados Unidos da América regressassem ao diálogo com Cuba. Não é coisa pouca.

Para liderar é necessário saber dizer o que está mal e envolver a população na mudança – quer se trate de países, empresas ou instituições.

Claro que os interesses instalados e os burocratas acobardados (perdoe-se a redundância) estremecem de pavor diante da perspectiva de um caminho que signifique menores prebendas pessoais e mais trabalho em prol da comunidade.

Francisco não será tão ingénuo que creia que o Espírito Santo baixará neste fim de ano sobre os que se querem desembaraçar dele, e os fará ver a Verdade e a Luz. Mas sabe que o seu exemplo de coragem, despojamento, amor e alegria deixará sementes.

Sabe que o triste estado do nosso tão sofisticado mundo se deve à falta destes elementos e à vitória da mediocridade sorumbática sobre a excelência sorridente. Por isso ri, brinca, ironiza: nada corrói tanto a hipocrisia como o riso.

O discurso do Papa Francisco foi o único projecto político forte e desassombrado que ouvi nos últimos anos.

Sim, há que acabar com as epidemias anímicas que têm transformado os seres humanos em ratos acossados ou acossadores. Há que apontar o dedo e não deixar que a mentira, a coacção e as suas mil emboscadas, a ganância e o abuso de poder continuem impunes. O resto virá por acréscimo.

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