As guerras de Jardim

De dedo em riste e virado para Lisboa. É esta a imagem de marca de Alberto João Jardim, o dirigente político eleito democraticamente há mais tempo no poder.

As guerras de Jardim

Em quase 40 anos de governação, Jardim foi dono e senhor da Madeira. Governou sempre com maiorias absolutas. Fez mais de 4.800 inaugurações compiladas em 16 volumes da obra Res non Verba (actos e não plavras).

Eleito em 1976, começou por ocupar o cargo de líder do grupo parlamentar durante ano e meio. Só em Março de 1978 assumiu o poder, sucedendo no cargo de presidente do Governo da Madeira ao engenheiro Ornelas Camacho. Tinha 33 anos. Desde então, com a cumplicidade da Igreja Católica – dizem os críticos – somou 46 vitórias eleitorais consecutivas.

Keynesiano, o modelo de governação preconizado por Jardim assentou na política do betão e do alcatrão. Esventrou a ilha, fez túneis e mais túneis, alguns deles para ganhar poucos quilómetros de percurso. Deixa para as gerações vindouras um grande investimento nas acessibilidades internas e externas, obras financiadas, sobretudo, por dinheiros comunitários. No seu currículo destaca-se a ampliação do aeroporto e a reconstrução após o temporal de 20 de Fevereiro de 2010.

O reverso da medalha é uma dívida superior a 6,3 mil milhões de euros que levou a Madeira, a 27 de Janeiro de 2012, a ter de assinar um resgate financeiro.

No dia 12 de Janeiro, ao fim de 37 anos no poder, o 'presidente eterno' – como lhe chamou o El País – apresentou a sua demissão. O mandato terminaria só em Outubro de 2015, mas a eleição de Miguel Albuquerque a 29 de Dezembro de 2014 (o candidato apoiado por Jardim era Manuel António Correia), antecipou a sua saída de cena. Quando deixar a Quinta Vigia, a residência oficial do Presidente da Região Autónoma da Madeira, levará consigo Dama, o gato que o acompanhou nos últimos 13 anos. 

Alberto João Jardim manteve com Lisboa uma permanente tensão institucional, que chegou a ser designada por 'Contencioso das Autonomias'. Curiosamente, foram os Governos centrais socialistas, e não os de direita, que mais beneficiaram o arquipélago. Com António Guterres à cabeça, que em 2009 perdoou à Região parte da dívida.

Tensão permanente com Lisboa

Quando Jardim assumiu o poder na Madeira, era primeiro-ministro Mário Soares, que liderava um Governo de coligação PS/CDS. A Constituição da República tinha sido aprovada em 1976 e já conferia às Regiões Autónomas uma série de competências que, no entanto, tardavam em ser transferidas.

No Verão de 1978, na famosa festa anual do PSD-M, no Paúl da Serra, começava a atoarda verbal contra Lisboa. Jardim falou em “tropa efeminada” e Soares chegou a exigir a sua demissão.

Sá Carneiro, que manteve um bom relacionamento pessoal com Jardim, foi responsável pela maior transferência de competências para a Região. Praticamente todas as que estavam previstas na Constituição, desde a Educação à Saúde – competências que a Madeira pede, agora, que Lisboa suporte financeiramente.
Quando a AD deu lugar ao Bloco Central chefiado por Mário Soares, houve muita “solidariedade”  entre Lisboa e o Funchal, mas pouco dinheiro. Ernâni Lopes, ministro das Finanças de Soares, foi uma das maiores 'dores de cabeça' para Jardim e o primeiro a levantar a questão da dívida.

Com a entrada em cena de Cavaco Silva, na Figueira da Foz,  esperava-se um período de acalmia nas relações entre o Funchal e Lisboa, até porque Jardim dera uma ajuda, recolhendo assinaturas às 6 da manhã. Mas aconteceu precisamente o contrário. Cavaco remeteu, sempre, todos os assuntos para os seus ministros e nunca assumiu compromissos.

Jardim chegou a perder a cabeça, ao ponto de se referir a Cavaco como “Sr. Silva”. No entanto, o líder madeirense teve de agradecer-lhe dois gestos de solidariedade. O primeiro, quando um derrame de crude atingiu a ilha do Porto Santo e o primeiro-ministro se deslocou à Região para avaliar a situação. O segundo, quando Mário Soares levantou a questão do “défice democrático” na Madeira. Cavaco promoveu umas jornadas parlamentares nacionais no Funchal como forma de desagravo de Jardim e do PSD-Madeira.

Em 1995, com a saída de Cavaco Silva do Governo, deu-se o regresso do PS ao poder. António Guterres manteve com Jardim um relacionamento institucional positivo, que se traduziu no facto de uma parte substancial da dívida da Madeira ter sido 'perdoada'. O então primeiro-ministro deu como justificação as percentagens das receitas das privatizações que deveriam ter sido canalizadas para a Madeira. Mesmo assim, Guterres – a quem, enquanto líder da oposição, Jardim chamara “tonto” -, não evitou ser apelidado de “mafioso”, no Chão da Lagoa.
Para Jardim, o sucessor de Guterres, Durão Barroso, foi um dos três melhores primeiros-ministros do pós-25 de Abril. Durão pôs em prática algumas das '35 medidas' contratualizadas entre o Estado e a Região, uma das quais só recentemente se concretizou: a entrega da fortaleza do Pico à Região.

Jardim defendeu Santana Lopes aquando da sua demissão de chefe de Governo, acusando Jorge Sampaio de “golpada constitucional”. Com a vitória de Sócrates nas legislativas de 2005, o relacionamento do poder central com a Madeira caracterizou-se por algum distanciamento. A nova Lei das Finanças Regionais (2007) foi a 'gota de água' de uma série de confrontos.

A 19 de Fevereiro desse ano, Jardim apresentou a demissão como forma de protesto e, nas eleições antecipadas de 6 de Maio de 2007, reforçou a maioria absoluta.

Só a tragédia de 20 de Fevereiro de 2010 viria amenizar a crispação. O Governo de Sócrates aprovou a Lei de Meios com verbas para reconstruir os 1.080 milhões de prejuízos. 

'Bendita dívida'

Em Setembro de 2011 seria divulgado que desde 2008 o Governo Regional tinha ocultado do registo oficial parte da dívida pública da Madeira. Alberto João Jardim defendeu-se e chamou-lhe “bendita dívida”, justificando que sem ela não teria sido possível fazer obra.

A dívida ganhou impacto internacional, quando Angela Merkel afirmou que a Madeira era um mau exemplo da aplicação dos fundos europeus. Em Fevereiro de 2012, a chanceler alemã considerou que o dinheiro europeu foi usado para “construir túneis e autoestradas” e não para tornar a Região mais competitiva.

Com o Governo de Pedro Passos Coelho/Paulo Portas, o relacionamento tem feito faísca. Jardim apoiara Paulo Rangel e não Passos Coelho para a liderança do PSD. E as farpas a Paulo Portas, sobretudo acerca do caso dos submarinos, foram recorrentes.

Insultos para todos os gostos

Em quase 40 anos de poder, Jardim já insultou tudo e todos. Chamou “efeminada” à tropa, apelidou os jornalistas de “bastardos”, classificou adversários políticos de “loucos”, “traidores”, “energúmenos”, “fósforo queimado”, “chulos” ou “patas rapadas”. Ainda recentemente reiterou a tese de que o deputado da CDU, o ex-padre Edgar Silva, ter-se-á apropriado das moedas dos “miúdos das caixinhas”.

Inaugurações, comícios e até celebrações servem a Jardim para lançar as suas críticas contundentes. Nas festas do PSD, o líder madeirense já disse de tudo. Chamou “bandalhos” aos socialistas (1992), “mafioso” a Guterres,  a quem prometeu ainda um “pontapé no traseiro”, e denunciou os colaboracionistas madeirenses como “gente sem calças e de rabo para o ar, virada para Lisboa”.

Contra Jardim poucas vozes se levantaram. A 22 de Fevereiro de 2013, populares no Bairro da Nazaré gritaram “Gatuno” e “Vai tapar o buraco!”. Ao que Alberto João respondeu: “Não vale a pena ladrar, porque ainda não aprenderam a ser cachorros”. No ano anterior, fora-lhe atirado um copo de ceveja no Porto da Cruz. E houve, claro, as rábulas do deputado José Manuel Coelho no Parlamento Regional, que chegou a mascarar-se de irmão Metralha para protestar contra a sua condenação por difamar Jardim.

A aguardar pela perda de imunidade do líder estão alguns processos pendentes na Justiça. Por exemplo, um de 1995, movido por António Loja após Jardim ter escrito no Jornal da Madeira um artigo de opinião intitulado 'Loja de rancores'. O mesmo jornal onde, num artigo de opinião publicado esta terça-feira, o 'presidente eterno' afirmou: “Até gosto do termo 'jardinismo'“. 

Momentos marcantes 

– Toma posse a 17 de Março de 1978
– Morte de Sá Carneiro em 1980. Segundo Jardim, foi o melhor primeiro-ministro português
– ‘Dá a mão’ a Cavaco Silva, no congresso da Figueira da Foz, em 1985, qundo a liderança do partido parecia disputar-se entre João Salgueiro e Rui Machete
– Visita do Presidente da África do Sul, Pieter Botha, e do ministro dos Negócios Estrangeiros, Pik Botha, à Madeira, a 13 de Novembro de 1986
– Jardim encontra-se duas vezes com Nelson Mandela
– Visita do Papa João Paulo II à Madeira em 1991
– A 25 de Maio de 1997 Jardim é vaiado em pleno estádio dos Barreiros, por adeptos do seu clube (Marítimo), após ter sugerido a fusão dos clubes da ilha (Marítimo, Nacional e União)
– Entre 1998 e 2002 o Governo de António Guterres, com Sousa Franco nas Finanças, assume os passivos da Madeira (dívida contraída até então) num total de 630 milhões de euros
– Inauguração da ampliação definitiva do aeroporto da Madeira, num projecto iniciado pelo engenheiro Edgar Cardoso e concluído por Segadães Tavares (2000)
– Demite-se para ser reeleito com maioria reforçada, em protesto contra a nova Lei de Finanças Regionais (2007)
– Visita dos Reis de Espanha à Madeira (2009)
– No dia 8 de Janeiro de 2011 sofre um enfarte do miocárdio e é internado no Hospital Dr. Nélio Mendonça, no Funchal. Entretanto recuperado, retoma funções e recandidata-se ao cargo nas eleições de 9 de Outubro de 2011
– A 2 de Setembro de 2012, um homem desempregado atira-lhe com um copo de cerveja, no Porto da Cruz

A Madeira antes e depois de Jardim

– Antigamente, ir do Funchal ao Porto Moniz demorava cerca de duas horas de viagem por caminhos sinuosos. Agora demora cerca de 45 minutos.
– A pista do aeroporto da Madeira tinha apenas 1.600 metros de extensão. Depois da extensão ficou com 2.781 metros e capacidade para aterragem de Airbus 340 ou Boeing 747.
– Em 1976, o PIB per capita da Madeira era de 23 contos (116 euros). Em 2012 atingiu os 19.569 euros.
– A esperança média de vida era de 69 anos em 1981. Agora é de 77.
– Em 2011, 99,4% da população tinha frigorífico ou combinado. Em 1980 era 68%.
– Em 2011, 55,9% da população tinha microondas (30,6% em 2000).
– Em 2011, 95,2% da população tinha máquina de lavar roupa (18% em 1980).
– Hoje 99,4% da população tem televisão (37,15% em 1999).
– O consumo de cimento era de 83 mil toneladas em 1978. Atingiu as 775 mil toneladas em 2004.
– De 1978 a 2012, as Câmaras Municipais licenciaram 44.025 novos edifícios. 
– A população  agrícola era de 40.760 pessoas em 2009 (127.231 pessoas em 1977).
– Em 1978, existiam 53.718 consumidores de electricidade e o consumo foi de 93.8 GWh. Em 2012, o arquipélago tinha 137.231 consumidores, com uma produção de 814,3 GWh.
– Em relação a 1978, o número de médicos aumentou 355%, o  número de enfermeiros 302% e o de farmacêuticos 323%. Eram 22 as especialidades médicas em 1978, hoje são 46.
– Hoje há 54 serviços locais de Segurança Social (zero em 1978).
– Há 24 lares para idosos (três em 1978).
– Em 1978, o rendimento médio por pescador era de 48 contos (240 euros) anuais. Em 2012 é de 9.613 euros.
– Hoje,  a Madeira recebe um milhão de turistas por ano (300 mil em 1978).
– São 162 os estabelecimentos hoteleiros, com uma taxa de ocupação média de 60%. Em 1978, havia 90, com uma taxa de ocupação média de 52,5%.
– Em 2013, os proventos de hotelaria representam 250 milhões de euros (7,5 milhões em 1978).
– A Educação Pré-Escolar conta com 8 mil alunos  (500 em 1978).
– Existem 97 associações e entidades culturais.
– A dívida regional representa 83% do PIB, quando a nível nacional é 130% do PIB.

Durante o consulado de Jardim

– Foi aumentada a pista do aeroporto de Porto Santo e aí construída uma nova aerogare.
– Foram investidos 441 milhões de euros em meia centena de novas infraestruturas marítimo-portuárias.
– Foi construída a Via Rápida Ribeira Brava-Caniçal (44 km).
– Foram construídas oito ‘vias expresso (82 km).
– Foram construídas 15 novas igrejas.
– Construíram-se 39 piscinas  (havia cinco em 1986), 239 polidesportivos, 37 campos de futebol (33 relvados), 119 salas para a prática desportiva, 25 campos de ténis e 25 ‘instalações especiais para desporto’.
– 14.800 famílias beneficiaram de Habitação Social (apenas 148 antes de 1978).
– Construíram-se 51 Centros de Saúde para 54 Freguesias.
– Foram construídos cerca de 70 grandes reservatórios de água, para acabar com a rega nocturna.
– A floresta Laurissilva foi reconhecida como Património da Humanidade.
– Fizeram-se 200 novos estabelecimentos escolares.
– Criou-se a Universidade da Madeira.