A mulher que gostava de encontrar um lugar sem homens

Em mim o mais ensurdecedor entre todos os gritos é o de Al Pacino no final da saga de O Padrinho; com a filha morta nos braços, a meio de umas escadarias à saída da ópera, o que lhe saiu da boca nunca mais me abandonou. Um grito roubado das entranhas, silencioso, esmagador. Um grito…

Lembra-se do grito que lhe falo? Impressionante. Tão impressionante como os que, já na vida real, amam o ódio mais do que a qualquer outra palavra. É incontrolável, um estado de paixão permanente – a diferença é que, ao contrário dos apaixonados clássicos, o seu estado de loucura não é temporário. A sua paixão é amor, uma coisa é a outra. Por isso, quem ama o ódio vai mudando de cara e de corpo. É uma fusão, um casamento inquebrantável, uma promessa de eternidade. O ódio é um noivo que exige tudo, uma árvore que seca à volta, um caminho sem retorno. Quem quiser que vá, mas não existe caminho de volta.

E há tanta coisa para fazer e para desejar. Mesmo que não fiquemos na história (até na história da nossa rua), mesmo que apenas contemos um dia para uma estatística que ninguém lerá. De vez em quando penso nisso. Na enorme massa dos que, no fim, apenas contarão como tábua de números. Nos que nunca terão voz. Nos que partem tão incógnitos como no dia em que nasceram. Nos que morrem na primeira linha de todas as guerras. Nos que são carne para canhão. Nos que me fazem acreditar que Deus existe, que Deus é a palavra justa que não encontro para explicar o que não tem explicação possível. Penso nos desgraçados e imagino um livro onde estejam inteiros e não pela metade, um livro com um nome pelo qual respondem em igualdade de circunstância com qualquer outro nome.

Tenho este pensamento muito presente, comentei-o numa roda de amigos. Grande discussão. O anonimato assusta mais hoje do que noutro tempo qualquer. Uma das pessoas presentes, mulher bonita e desejável, confessou a dado passo que não era tema que lhe interessasse. O que ela realmente desejava era conhecer um lugar sem homens que a quisessem. Porquê, quisemos saber. Por estar cansada de ser olhada como uma presa, deixou de resposta. Mas somos caçadores, a diferença está apenas nas armas que utilizamos, tentei. 'Muito bem, mas experimenta ser uma mulher, bonita e estafada de ser cortejada. Já está? Agora observa-os à tua volta, os sorrisos, as piadas, a posição do corpo'. Derrotado, levantei-me. Não me ocorreu dizer-lhe mais nada. Mudámos de assunto.

Há coisas que nos acontecem e sobre as quais não pensamos muito. A estreia de As Cinquenta Sombras de Grey, e o sucesso do livro, dos livros do género, tornam o sexo matéria de discussão pública, escancararam-se as portas da intimidade. O mesmo não acontece com os miúdos em casa; os miúdos continuam a ficar impressionados/chocados quando ouvem os pais fechados no quarto – os pais ou um deles com o parceiro que escolheram. E poucas coisas incomodam tanto a maioria dos pais como a circunstância de um serão em família ser interrompido com cenas sexualmente ousadas. Valha-nos isso. Mesmo os mais cosmopolitas sentem a obrigação de, delicadamente, tornarem dogma o amor da carne. É como se não existisse. E um dia, por tão zelosamente o fazerem, os pais assumem aos olhos dos filhos o papel de virgens. Todos ficam apaziguados, nós e os nossos meninos que crescem na ideia de que vieram ao mundo por graça do Espírito Santo. Ou às cavalitas de uma cegonha.

Nada tenho contra superstições. Sou um crente, convicto. Acredito em Deus, fábulas, querubins e anjos de guarda. Quem será o meu anjo de guarda? Quem será o seu? Sinto conhecer o meu, pressinto-o a ir ao frigorífico ou sentado ao meu lado a ver um filme, a acompanhar-me na leitura ou a ser testemunha do que sou e faço entre quatro paredes. Por vezes, tento surpreendê-lo, viro-me rápido, quase o apanho.

Estou a ficar velho. Gosto destas conversas consigo, imagino-as como conversas. Passamos bons minutos numa relação nada linear. Como a própria relação com o tempo, nunca linear. Porque se o fosse, os mais novos seriam pontuais e os mais velhos condescendentes com o relógio – mas a preocupação de chegar a horas, a obsessão pela pontualidade, é um atributo dos que percorrem as últimas estradas, não dos que vivem como se fossem eternos. Quando for mais velho, estado de sabedoria que ambiciono alcançar, não usarei relógio ou marcarei na agenda. Atrasar-me-ei por sistema. Ou chegarei antes. E quando soar a minha hora lá estarei. Mais vivo do que nunca. Preparado para mergulhar para fora do tempo.

Nada linear, torno a dizer. Dentro da cabeça o tempo não é o mesmo. Horas, dias e estações são apenas abstracções sem relevância. Dentro da cabeça um segundo é um buraco negro ou o regresso ao Éden, num segundo inventamos riachos e continentes, somos eternos e diabólicos. Dentro da cabeça, o inferno é fundo e a redenção possível. Num segundo, este segundo, tive horríveis pensamentos e a culpa por os ter tido. Dentro da cabeça, uma hora é a velocidade da luz, um buraco negro ou o regresso aos dinossauros. Aqui dentro, e aí dentro de si, tudo se joga enquanto abrimos e fechamos os olhos, num segundo.