Viver com medo

Um grande amigo do meu pai, Hugo dos Santos, que pertenceu ao grupo dos criadores do 25 de Abril, repetiu-me vezes sem conta que nunca tivesse medo de nada, porque era para isso que eles tinham arriscado a vida: para que nunca mais vivêssemos com medo.

A intimidação desses bárbaros que se auto-intitulam 'Estado Islâmico' visa exactamente a imobilização e o acatamento através do pavor. As democracias exigem o oxigénio da liberdade – sem esse elemento de base, esboroam-se. Dessa liberdade faz parte o direito ao protesto – justo ou injusto.

Pasmo, por conseguinte, quando vejo médicos e enfermeiros falarem de costas e com as vozes distorcidas para as reportagens televisivas sobre os problemas nos hospitais. As pessoas podem ser despedidas se fizerem críticas frontais às instituições?

Pasmo, ainda, quando leio nos jornais a notícia da anulação de um concurso público, na sua fase final, invocando 'reservas' nas respostas à entrevista final por parte dos concorrentes – e os concorrentes preteridos respondendo que não houve qualquer 'reserva' nas respostas e lamentando que não exista acta dessa entrevista, feita à porta fechada e sem testemunhas…

Onde pára a transparência? Onde andam a justiça e a liberdade?

Na revista da Ordem dos Advogados, uma advogada narra prisões sem mandado de captura e sem que os detidos tenham direito a um telefonema para chamar um advogado, além de buscas e inquéritos pela noite dentro em casas particulares incluindo longos interrogatórios a pais em frente a crianças pequenas, e ainda interrogatórios durante dias a fio sem que aos detidos seja sequer facultado o direito a um banho e a muda de roupa.

O texto intitula-se Vamos a supor… suponho que temendo as consequências terríveis que adviriam para ela e para os seus clientes se a narrativa não viesse em forma de fábula.

As leis democráticas não impedem que as autoridades possam agir com este desrespeito pelos cidadãos, nem permitem que os advogados ponham nomes e datas às ilegalidades de que têm conhecimento? Que país é este, em que a própria ministra da Justiça diz publicamente que fala ao telefone “como se falasse para um gravador”?

Entretanto, os casos em 'segredo de justiça' ocupam nos jornais o lugar dos antigos romances em fascículos, recheados de pormenores mirabolantes que envolvem famílias inteiras e conspirações sucessivas.

Se um detido visado pela quebra contínua do segredo de justiça se atrever a responder ao que lê nos jornais, é um celerado que está a tentar 'prejudicar' o processo e será punido por isso; já o estendal dos 'processos' na praça pública é considerado inócuo, e ninguém se move para apurar a responsabilidade das constantes fugas de informação, nem para meditar sobre os efeitos dos linchamentos públicos de carácter.

Ouço cada vez mais gente a recomendar silêncio a amigos e conhecidos, resignação face a injustiças de toda a espécie.

Quase todos os dias surgem notícias de mulheres que ousaram apresentar queixa de maridos ou ex-maridos violentos e acabam assassinadas – o que certamente conduzirá muitas outras a suportarem caladas todos os abusos, que demasiadas vezes atingem também crianças.

A cultura do medo em todas as suas variantes (do medinho e da miúfa ao terror) está a minar a democracia portuguesa, fomentando um Estado de Impunidade que não augura nada de bom.

inespedrosa.sol@gmail.com