Plebeus sem testículos

À porta de um cinema sem pipocas, nas salas que prefiro, encontrei a professora que mais me marcou. Estava com uma amiga, eu com os meus filhos. Um e o outro tinham ido à casa de banho, o mais velho foi o primeiro a regressar. A minha professora, Helena Lebre, que nas aulas de Filosofia…

Quiseram as estrelas e constelações que, na mesma semana, um grande amigo, Artur Pereira, tenha visto o meu outro herdeiro, Miguel, entrar no colégio onde está também o seu de dez anos. Entraram lado a lado sem se conhecerem. Lado a lado, sem lhes passar pela cabeça que os pais partilharam tantas histórias. Lado a lado, como futuros cúmplices num mundo que ainda nem sequer vislumbram. O Pedro e o Miguel não se sabem. Um dia apresentamo-los ou então não, ou então deixamos que a vida os encontre e apresente como se encarregou de nos fazer. Soube deste 'invisível' encontro por um SMS do Artur, dizia assim: “Ontem observei os nossos dois filhos. O teu mais pequeno e o Pedro, entrarem no colégio, lado a lado, praticamente do mesmo tamanho, os dois de óculos, mochila às costas, quase a tocarem-se, a olharem o chão, inocentes, sem suspeitarem nada dos pais… foi estranho e belo. Algo cósmico. Vi-nos projectados neles e a revelação da nossa mortalidade”.

Viste a revelação da nossa mortalidade. Vejo-a todos os dias, até por pressentir um reaccionarismo que não tinha antes. Estou a transformar-me rapidamente nos textos que escrevia há vinte anos quando observava os estranhos movimentos e pensamentos de quem envelhecia. Todos os velhos, de todos os tempos. Ainda ontem vi um filme com um personagem que enriqueceu com o nascimento dos carros. O primeiro não passava de um coche vazio. Um coche sem cavalos, uma lástima. Os mais velhos recusaram a monstruosidade, não por medo do progresso, mas por um imperativo de bom gosto e defesa da civilização. Tinham razão sem a ter. No progresso há sempre aldeias dizimadas e pessoas ultrapassadas pelas circunstâncias, gente que fica orgulhosamente para trás, na sua, reaccionários de causas perdidas. Cada vez mais os aprecio, por um imperativo de bom gosto e defesa da civilização. Defendo os livros, os jornais de papel, o casamento para a vida e a ideologia. Estarei em breve por minha conta, essa é que é essa.
 
Outro sinal é a vontade de marcar férias no Inverno. Uma vontade que não pode ser concretizada, infelizmente as férias da escola não são compatíveis com devaneios de envelhecimento. Mas não o nego, quando os miúdos crescerem mais um pouco e estiverem por sua conta começarei a marcá-las para os dias de chuva e frio. Será que se o fizéssemos mudaria alguma coisa em nós? Ficaríamos mais deprimidos por trabalharmos no pico do calor e descontrairmos no pico do cinzento? Não sei. Talvez mais deprimidos, sim. Mas sem dúvida mais despertos, pois pensar passaria a ser uma das ocupações de lazer, pensar sobre o que temos à frente, o que temos dentro do que somos, o que podemos fazer para voltarmos a não ter que pensar em nada.

Torno ao início, à tal ordem cósmica de que escrevia o meu amigo Artur. As conversas de Deus, as que temos há tantos séculos, as que tenho desde que me lembro. Engraçado… nas tragédias gritamos contra Deus ou contra a nossa ingenuidade. O que nos levou a acreditar tanto no que afinal nos desampara, no que nos fere em silêncio, no que sem dúvida não existe quando tanto quisemos que existisse? Se Deus não fosse uma ficção, as guerras seriam impossíveis, as barbáries, a morte de crianças, a fome e qualquer miséria humana. Coloco as coisas numa outra perspectiva, igualmente simplista: sem tudo isso, sem todas essas tragédias conseguiríamos nele pensar? Faria ele sentido se estivéssemos empanturrados de uma farta vida?

De qualquer modo, há destinos piores. Ou melhores, depende sempre da perspectiva. Durante a dinastia Joseon, dominante na Coreia durante 500 anos, os plebeus que desejassem servir o imperador e aceder ao palácio tinham, tão-somente, de passar por um pequeno 'Rubicão': cortar os testículos e estar dispostos ao que mais viesse. Uma vida tranquila a partir daí, sem tentações carnais e absolutamente focada. Uma carreira de futuro. É que, há poucos meses, investigadores não deixaram espaço para qualquer dúvida, pequena ou grande. Os castrados da corte de Joseon viveram entre 14 e 19 anos mais do que os homens 'com eles no sítio'. O número subiu entre os que ultrapassaram o século de vida… em média, 130 vezes mais amputados tornaram-se centenários. Pelos vistos não há elixir da juventude mais potente do que este. Fica a informação. Mãos à obra.