Começar de novo

No último acto do político profissional, actor perfeito e de frio calculismo de que o povo tardou em se fartar, Sócrates soube sair com elevação e humildade democrática.

e josé sócrates saiu de cena. com elevação e humildade democrática, coisas raras e pouco vistas enquanto teve poder absoluto ou relativo nos mais de seis anos em que ocupou a cadeira de chefe do governo.

com ajuda do teleponto que usa como ninguém neste lado do atlântico (no outro, obama é mister), foi elegante na despedida, sobretudo porque acabara de ser escorraçado inapelavelmente pelo eleitorado. teve apenas uma frase de improviso – «não tornem isto ainda mais difícil do que já é» – quando a sala reagiu ao anúncio da sua demissão da liderança do partido.

convenhamos que, para quem liderou o ps como este partido nunca antes se deixara liderar – em submissão total e absoluta aos desejos do seu secretário-geral –, não deve ter sido um momento, de facto, nada fácil.

em tudo o mais, foi o político profissional, actor perfeito e de frio calculismo de que o povo tardou em se fartar.

o mesmo povo que, agora, elegeu e deposita esperança em passos coelho, que, neste aspecto em particular, se apresentou nos antípodas de sócrates.

passos coelho surgiu e impôs-se como um homem comum, com autenticidade, que diz o que pensa e que fala verdade mesmo quando isso lhe causa engulhos e vai contra as lógicas dos estrategas da imagem e do marketing político.

foram estes, aliás, que lhe vaticinaram o insucesso e alimentaram as ilusões de sócrates e dos socialistas socráticos, quase até à recta final da campanha, de que ainda era possível o psdnão ser o partido mais votado (mas sim o ps) ou não ter a maioria absoluta em conjunto com o cds de paulo portas – obrigando a uma solução com os socialistas. mesmo quando já se tornara claro que o ps em campanha já se reduzia à máquina sempre bem montada e oleada que sócrates tão bem soube construir.

ora, o trunfo de passos coelho foi exactamente esse: o de não se deixar enredar por uma máquina de propaganda em que claramente teria desvantagem em relação ao seu rival (e mesmo em relação ao experiente paulo portas, com uma organizada, jovem e motivada estrutura partidária).

e farto de propaganda, como se viu, estava o eleitorado.

eleições passadas, segue-se o teste mais difícil.

a governação em sujeição à parceria com a troika, da ue, bce e do fmi, que balizará a margem de manobra do futuro executivo, já se sabe que será extraordinariamente exigente e difícil. e, obviamente, impopular.

endireitar o país e devolvê-lo a um rumo de futuro é tarefa mirífica.que obriga a não perder mais tempo nem autoriza o erro.

essa foi, aliás, a mensagem que cavaco silva, habilmente torneando os condicionalismos constitucionais, quis passar ao próximo primeiro-ministro, e ao país, quando chamou passos coelho a belém no dia imediatamente seguinte ao das eleições, sem esperar pela audição prévia dos partidos nem ousar desrespeitar os formalismos para a investidura do novo governo.

cavaco fez acelerar o processo sem formalmente o desencadear. por forma a que no próximo conselho europeu – dia 23 de junho – portugal possa já estar – como deve – condignamente representado pelos novos e legítimos governantes.

e nada impede, antes tudo o exige, que não haja mais e inoportunas delongas.

nos quinze dias do entretanto, passos coelho tem a não menos exigente missão de constituir a sua equipa.

deu boas indicações quando fixou um restrito número de ministros. devem ser poucos, mas de reputada competência e capacidade de dedicação à res publica.

mais do que nunca, portugal precisa de quem queira dar governo ao país – que não se compadece com mais desgoverno – e não de quem pense em governar-se.

e se passos coelho cumprir o que prometeu, fará um governo sem ceder às contas, expectativas ou interesses menores dos aparelhos partidários do psd ou do seu parceiro de coligação, cds.

é claro que tem de haver compromisso e cedências de parte a parte, mas não pode comprometer-se o objectivo cimeiro por causa de reclamações mesquinhas de mais este ou aquele ministério ou desta ou daquela pasta.

que para o governo vá quem, independentemente da filiação ou simpatia partidária, em melhores condições estiver para cumprir o projecto necessário para portugal e os portugueses poderem voltar a acreditar no futuro… em respeito pelo voto expresso nas urnas.

mario.ramires@sol.pt