Parem de escutar e de olhar

O escândalo das escutas em Inglaterra já fez e fará correr muita tinta nos quatro cantos do mundo.

portugal, naturalmente, não é excepção.

as escutas que abalaram a sociedade britânica, que ameaçam desmoronar o império do magnata rupert murdoch, que destruíram a intocabilidade da scotland yard e da polícia metropolitana e que deixaram o governo do conservador david cameron no fio da navalha ultrapassam todos os limites.

a família real foi escutada ilegalmente? foi.

o ex-primeiro-ministro trabalhista, gordon brown, viu a sua vida familiar devassada e ilegalmente vasculhada durante anos? viu.

outros políticos e figuras públicas foram vítimas destes processos ilegais de intromissão na esfera da sua privacidade? foram.

e não foram só figuras públicas? pois não. está provado pelo caso de uma adolescente raptada quando fazia o percurso entre a escola e a casa dos pais e cujo telemóvel foi interceptado pelo news of the world, que inclusivamente apagou mensagens de voz; e pelas escutas a familiares de soldados mortos no afeganistão ou até a familiares de vítimas do 11 de setembro no outro lado do atlântico.

ultrapassa todos os limites e os mais elementares direitos dos cidadãos? claro que ultrapassa.

e é absolutamente inaceitável? claro que é!

por isso, as consequências do rebentamento deste escândalo em inglaterra, com estrondo mundial, não se ficarão pelo encerramento do centenário jornal de murdoch e pela machadada fatal na auto-regulação da imprensa, pelas demissões do director de comunicação do gabinete do primeiro-ministro inglês, de altos responsáveis da sco_tland yard e da polícia metropolitana e pelas audições extraordinárias no parlamento britânico ou pelos inquéritos e processos judiciais consequentes.

«todos cometemos erros na nossa relação com os meios de comunicação social», declarou david cameron no parlamento britânico.

mas o que está em causa é muito mais do que uns meros ‘erros’ de relacionamento com a ‘comunicação social’.

as escutas ilegais e a devassa da vida privada não são um mero problema da comunicação social pouco escrupulosa e de polícias corruptos ou de políticos mesquinhos.

são um problema da era moderna, a factura do desenvolvimento tecnológico e da falta de valores na sociedade em geral e dos diferentes poderes que nela convivem.

o big brother existe e reproduziu-se em várias escalas.

as escutas ilegais, a violação de correspondência (sobretudo electrónica, que a outra é já quase irrelevante), a recolha de imagens sem a autorização devida são uma constante nos dias que correm e em toda a parte.

hoje, qualquer empresa com uma central de comunicações – e quem não as tem? – pode a qualquer instante isolar as chamadas efectuadas a partir de qualquer extensão e reproduzir as conversas havidas num determinado período. não é segredo para ninguém.

como não é segredo que qualquer cidadão não precisa de mais de meia dúzia de dezenas de euros para adquirir aparelhos que lhe permitam escutar tudo o que se passa numa determinada área circundante. ou câmaras de filmar, que as há por todo o lado, escondidas ou até não. há de tudo à disposição de qualquer um.

em portugal, enquanto se gastam rios de tinta, e justificadamente, com o escândalo em inglaterra, ninguém parece estar preocupado com os big brotherzinhos que temos por cá, injustificadamente.

os membros do governo não falam à vontade ao telefone e recorrem ao gmail para trocar informações mais reservadas ou confidenciais por temerem que os correios electrónicos oficiais não sejam seguros, o procurador-geral da república desconfiava há tempos que tinha o telefone sob escuta, a própria presidência da república deu nota da falta de garantias da inviolabilidade das suas comunicações.

a verdade é que, em portugal, todos se julgam sob escuta.

e muitos estão, porque sempre as houve.

mas, tirando uma tímida reacção de antónio josé seguro, em entrevista à lusa, ninguém quer verdadeiramente importar-se com isso.

até um dia.

mario.ramires@sol.pt