A impossibilidade de um Jardim nos açores

O país tem estado em choque. Quem poderia imaginar que Alberto João Jardim aldrabava as contas? Daqui a nada está aí Dezembro e temo a enésima conferência de imprensa do Ministro das Finanças, desta vez para nos atordoar a todos com a revelação de que o Pai Natal não existe.

e agora – como vicente jorge silva aludia a semana passada, no sol – a madeira transformou-se na nossa grécia. se os alemães sugerem a perda parcial de soberania (estranho conceito) para os estados que se revelarem incapazes de pagar a sua dívida, não faltam portugueses a sugerir que se dê carta de alforria aos madeirenses. sim, não deixa de ser sugestiva e atraente a ideia de uma madeira independente, convenhamos. assim, teriam que chamar de imediato o fmi, e talvez o país recebesse – na volta do correio – uma quantia substancial para ajudar no pagamento das suas contas, espécie de pescadinha de rabo na boca versão agências de rating.

mas o que me traz aqui é outra questão, um certo cheiro a xenofobia que paira – e até a presumidos intelectuais se podem assacar responsabilidades pelo odor. passa-se, pelo menos está o escriba convencido disso, que há portugueses de primeira e de segunda. e, como diz o povo, ‘longe da vista, longe do coração’. por isso, sempre que espreita a oportunidade de arriar nos ilhéus, há sempre alguém danadinho para atirar a primeira pedra. ainda hoje me lembro bem de uma coleguinha bracarense no tempo da faculdade de direito que, desconhecendo as minhas raízes açorianas, iniciou uma conversa de bar com a desdenhosa pergunta: ‘com que contribuem os açores para o pib?’. mandei-lhe meia dúzia de respostas – indústria pecuária, pescas, lacticínios, base das lajes, turismo e uma das maiores zonas económicas exclusivas do planeta e depois deleitei-me em vê-la chafurdar no silêncio perante a devolução da pergunta mas desta vez relativa a braga.

não vou, portanto e logicamente, embarcar no coro que afina no mesmo diapasão, resumido a isto: ‘os madeirenses que se aguentem, os madeirenses que paguem a crise’ (trocar madeirenses por gregos, sempre que lhe for mais conveniente). sucede que alberto joão jardim criou uma espécie de estado clientelar, o número de funcionários públicos na região autónoma é dig-no do livro dos recordes; e tentacular, controla a seu bel-prazer os media locais. logo, o ‘povo madeirense’, que tanto gosta de exortar, não é quem ajj serve mas sim e na prática vítimas do síndrome de estocolmo, ou seja seus verdadeiros reféns.

um arremedo de jardim só não terá sido possível nos açores por um motivo bem prosaico: geografia. sim, dominar uma só ilha jeitosa e um torrãozinho encantador (porto santo) é muito fácil – não é, isaltino? (outro potencial exemplo de quem ‘rouba, mas faz’) –, sobretudo quando no outro prato da balança está um arquipélago com nove ilhas e bairrismos vários entre estas.

agora resta torcer pelos madeirenses. somos todos passageiros do mesmo barco, ainda que a jangada de pedra tenha muitas milhas marítimas de intervalo até chegar à ‘pérola do atlântico’. por uma vez, se porventura perdermos os dedos, mantenhamos os anéis.

ii – um dia na vida de um cobarde

o cobarde acorda e come algo enquanto já ligado à net. se pudesse, aliás, o cobarde passaria o dia inteiro online, pois o mundo virtual dá-lhe a ilusão de existir. se despertar maldisposto aproveita então logo para deixar um par de insultos que de imediato o reconciliam consigo próprio, desconhecendo em absoluto que estes muito mais revelam sobre o seu autor do que sobre o destinatário – e, claro, ao abrigo do anonimato, um pseudónimo ou perfil falso. posto isso, passa as horas diurnas no emprego que odeia mas do qual não tem coragem de se despedir e, no regresso a casa, dá-lhe certa vez a suprema lata de gritar impropérios a um famoso que passa enquanto, óbvio, carrega no acelerador. chega feliz ao lar. janta só mas tem o amor à sua espera. é a sua mão direita, que utiliza para dois fins: um, é usar o rato como quem se vê ao espelho, procurando na sua existência cibernética o reflexo de alguma importância; o outro, deixo à imaginação do leitor.

iii – rainha morta, rainha posta

com a morte de amy winehouse, um nome veio afirmar-se com estrondo. literalmente, um só nome: adele.

o escriba é obsessivo no que concerne à música. devo ter mais de três dezenas de cd em casa por abrir. porque quando gosto de um disco ouço-o até à exaustão, normalmente no carro, viagem após viagem, curtas e longas, numa repetição que só acaba quando não me resta mais nada para descobrir no álbum. ou não consigo. adele tem dois discos, ‘21’ e ‘19’. comprei o segundo, ironicamente o seu trabalho de estreia, durante a audição do primeiro – e permanece um dos discos imaculados. ainda vou a meio da obsessiva repetição de ‘21’, perfeitamente assombrado com o talento desta menina (os títulos dos álbuns correspondem à idade que tinha quando os lançou). letra, voz, melodia, interpretação: se a música fosse uma ciência exacta, adele merecia o nobel.

como é possível alguém tão jovem cantar desta maneira sobre promessas desfeitas, dores de alma e amores desavindos? adele não saberá, mas é uma verdadeira fadista.

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