O exemplo de um herói improvável

Um leitor sensibilizou-me ao pedir, repetidamente, que usasse esta página – o mais possível – para inspirar. Uma pausa na recessão, espécie de intervalo publicitário para anúncios pagos pela esperança. Esta talvez não seja a melhor imagem, mas a biografia resumida que vou contar é-o seguramente.

o meu amigo josé ficou órfão de pai aos 3 anos, tem uma irmã que pouco viu (foi para um orfanato aos 5 e ele para outro, dos 6 aos 19), e nasceu no bairro da sé – porto, donde viu muitos amigos acabarem por ser presos ou vítimas da droga. tornou-se, literalmente, o homem dos 7 instrumentos: foi trolha, padeiro, ajudante num escritório de arquitectos, trabalhou como segurança e num armazém de material de construção civil. chegou a frequentar a sopa dos pobres e, quando conseguia ir a casa ao fim-de-semana, comia os restos que uma vizinha amável guardava para ele recolher ao sábado.

ao sair do internato, sentiu na pele a merecida bondade dos estranhos e arranjou emprego numa loja de discos – evento que, considera, foi a sua salvação. apaixonou-se pela música e pela futura mulher, e trocou a invicta por lamego.

já na cidade monumental, fez o curso técnico de programação de computadores, concluiu o 12.º ano e, recentemente (aos 36 anos), uma licenciatura em secretariado de administração. tem dois filhos, uma óptima casa e um negócio de decoração de interiores – a zette é a decoradora e o zé executa o que ela idealiza. acaba de ser convidado para dar formação na escola superior de tecnologia e gestão de lamego e ainda faz uma perninha numa banda, o que lhe garante uns trocos extra contra a crise. é uma figura adorada na comunidade lamecense, integra uma associação cultural muito activa e – numa doce ironia sobre este verdadeiro exemplo de resiliência – todos os anos interpreta cristo na mítica procissão do sr. morto, pela páscoa.

que tal como inspiração?

ii – homens de lado nenhum

escrevo desde unhais da serra onde me encontro pela primeira vez. uma varanda queiroziana, digna de a cidade e as serras, cicatrizada entre encostas ora de rocha ora de verde, como claques num grande estádio cheio, a competir – à vez – num gritante silêncio.

é um lado da serra da estrela que não conheço, muito embora tenha raízes nas redondezas. recordo a minha última memória de vila nova de tazém, a terra do meu pai, e de como fugi dela a sete pés após meia dúzia de horas no intuito de lá apresentar um livro, contornando a noite gratuita na melhor residencial do sítio na proporção inversa em que me deparava com primos jamais vistos e os seus níveis crescentes de alcoolémia. quanto mais apareciam, mais vontade tinha de me ir embora. não sou beirão, mas tenho uma costela beirã.

e vou ainda mais fundo no baú das memórias para rever a primeira fotografia tirada em lisboa, acabado de chegar dos açores, ainda no tempo das máquinas com rolo: o escriba com o cabelo todo e uma vestimenta que a mãe aprovaria, à frente de um mural de azulejos no metro da cidade universitária, caloiro como o primo amigo de infância que terá dito ‘olha o passarinho’ com o mesmo grito mudo dos paredões naturais na serra agora defronte – e atrás de mim a frase de sócrates: ‘não sou ateniense nem grego mas sim um cidadão do mundo’. será? falta-me mundo, ainda.

resta a memória mais recente, de há dias. dois espectáculos na terra-natal, ilha terceira. stand-up comedy para os locais, meus conterrâneos pouco habituados a este registo. duas noites cheias de calor e gargalhada e ainda assim a sensação de que voltei a um clube do qual já não sou membro. ironizei com isso durante a actuação: sou um terceirense manhoso, pois fui feito em são miguel e de pai beirão. mas a minha mãe – na altura professora primária na ilha maior – é tão bairrista que, uma semana antes do parto, meteu-se num barco para casa. é tão bairrista, aliás, que conduz sempre em 3.ª. tão bairrista que achou perfeitamente normal e saudável que o primogénito namorasse com uma stripper vítima de hepatite b e que lhe roubava o dinheiro, enervando-se apenas ao saber que ela era micaelense (esta última, fique bem claro, é inventada).

fico sem entender o porquê de uma sala quente cheia dos ‘meus’ não me devolver, de todo, a sensação de pertença. talvez seja o sentimento de culpa por voltar a casa sem conseguir ser filho pródigo. faltou-me procurar os amigos de infância, num receio provavelmente estúpido de que já não me compreendam. talvez já só saiba falar de trabalho, me tenha agarrado demasiado a ele para ultrapassar dramas pessoais e prendido muito menos às amizades, como era suposto, como devia, a quem pertencia. mea culpa. mea probabilíssima culpa. e dou por mim a actualizar josé régio ao contexto actual, entalado nas escarpas desconhecidas da serra da estrela: ‘não sei de onde sou / não sei para onde vou / sei que não sou daqui’.

quero acreditar, com os mesmos orgulho e firmeza destas rochas nas cercanias, que ainda vamos a tempo, eu e eles, de reencontrar o caminho para essa nacionalidade desconhecida mas comum. carpe diem, querido primo/amigo de infância/fotógrafo do passado sumido. e deixemos de gastar o latim.

lfb_77@hotmail.com