Conto de uma carta em crónica

O desejo de reconquistar a filha e o neto são as lufadas de oxigénio necessárias para querer continuar a ver o sol. ‘Sei que que vim a este mundo só para te ter. Perdoa-me. O teu pai’

para a rita

escrevo-te desde o meu modesto quarto. desde a secretária que, peça a peça, recuperei da rua. escrevo-te com esta minha mão desajeitada que já quase não se lembra da própria caligrafia. olá, aninhas. é o pai.

assim começou a carta que ele enviou à filha que não vê desde criança. o pai era um homem bem-parecido, um eterno ingénuo que facilmente se deixava seduzir por mulheres. infelizmente, essa não era a sua única tentação. as drogas também se tornaram um vício. um dia, na tentativa desesperada de não perder o amante, ela disse-lhe que estava grávida. a criança nasceu doze meses depois. como era de prever, o destino quis que o pai saísse de casa. mas tudo começou a desmoronar. ele viu-se metido em lutas entre mafiosos, que lhe cegaram uma das vistas, viu-se obrigado a fugir à polícia. estava perdido mas, pior que tudo, estava afastado de ana, o seu rebento, o seu tudo. não sei o que é que a mãe te contou, mas não sou o monstro que pensas. impedido de ver a filha e cada vez mais dependente da mais conhecida assassina em fuga, ele não viu outra alternativa se não fugir para outro país.

eu sei que nunca te devia ter deixado, eras tão pequenina.

longe da família e do país onde crescera, o pai foi sobrevivendo como sem-abrigo. pedindo esmola e dormindo debaixo de pontes, chegou até toulon, frança. acordar e não estar morto tornou-se a angústia diária. tentei suicidar-me, mas saber que estavas algures a crescer, a tornares-te mulher, falou mais alto. sei que não te faria diferença, afinal, há anos que não sabias nada de mim. mas não podia fazer-te mal, outra vez. penso que não recebeste uma única carta das que te fui escrevendo. sabias disso? sabias que o pai te enviava um postal, semanalmente? não interessa. abandonei-te e não há nada que me arrependa mais. destruí-me e deixei-te sem papá.

a droga deixou-lhe sequelas e o coração já só bate com a ajuda de medicamentos comparticipados pela segurança social. as quatro paredes que o abrigam estão forradas de mapas tracejados, prateleiras restauradas e fotografias antigas. tudo o que tenho dentro desta casa, trouxe da rua. nem imaginas as coisas que as pessoas desperdiçam. ele já não pode trabalhar, foi dado como ‘inválido’. antes limpava prédios de bairros sociais árabes. no sul de frança há imensos. uma força superior castigou-me, mas também me abriu os olhos. estou limpo há anos, não sei bem há quantos. perdi a noção do tempo. a rua faz-nos isso.

a filha deu-lhe um neto. fez agora 5 anos. recentemente conseguiu comprar um computador, através do qual a tentou contactar por várias vezes. percebo que não estejas interessada em ouvir a minha versão do que aconteceu. já se passaram muitos anos. mas não sei por quanto mais tempo andarei por cá. tornei-me uma bomba-relógio. e esta é a minha última tentativa. não quero massacrar-te mais. estás no teu direito.

josé é o nome dele, o nome do pai. e o desejo de reconquistar a filha e o neto são as lufadas de oxigénio necessárias para querer continuar a ver o sol. sei que vim a este mundo só para te ter. perdoa-me. o teu pai.

a campainha do exíguo apartamento toca. monsieur lima? à porta está um homem baixo e gordo, com a identificação pendurada no bolso de uma camisa barata, que lhe entrega um bilhete. no verso está escrito: veste o teu melhor fato e apanha este táxi. já nos vais contar o resto. ana.

ii – virar o feitiço contra o feiticeiro

não quero parecer o condutor em contramão numa auto-estrada pejada de tráfego e que permanece convencido de que todos os outros é que estão errados, mas já aborrece a quantidade de colunas indignadas com a barbárie a que foi sujeito o ditador líbio. desconfio da sinceridade, pureza da maioria. quero aliás mesmo crer que, num recanto secreto e mais ou menos perverso das alminhas das virgens ofendidas, há um calor confortável – aquele que todos sentimos nas raras ocasiões em que a justiça é feita.

sim, percebo perfeitamente a racionalidade e o bom senso dos argumentos contra a sevícia, louvo a dignidade da convenção de genebra e o esforço de humanidade de todos os que sinceramente acreditam nele, mas kadhafi foi alguém que torturou, roubou, subjugou o seu próprio povo, financiou o terrorismo e, como é apanágio dos tiranos, viveu em obscena e extravagante opulência. o homem que chamou ratazanas aos ‘rebeldes’, e acabou por ser encontrado num esgoto, simplesmente conheceu o seu perfeito destino – num exemplar, redondinho e retumbante caso de justiça poética.

claro que houve excesso, brutalidade e horror – o ser humano não é intrinsecamente bom, muito menos quando se forma uma multidão – mas consigo compreender aqueles homens a quem coube a suprema oportunidade de fazer justiça pelas próprias mãos. e basta ver o que aconteceu noutros recantos da primavera árabe para logo desconfiar que kadhafi, escapando, poderia acabar como os seus pérfidos congéneres: deposto, sim, mas algures num exílio dourado.

acabou assim, e quanto a este humilde escriba, dificilmente poderia ter acabado melhor (pior).

lfb_77@hotmail.com