Incêndio na Sicasal

Desde muito pequena que o meu medo de estimação se chama fogo.

durante a infância e parte da adolescência, sonhava mesmo, recorrentemente, estar rodeada de fogo tentando equilibrar-me na boca de um cântaro de barro cheio de água. a angústia aumentava à medida que o fogo se aproximava, sufocante, e eu não conseguia entrar por aquela boca estreita, dentro da qual estava a salvação. acordava exausta.

ainda hoje não sei interpretar o meu pesadelo de infância.

de tal forma o fogo ainda hoje me perturba que, em conversa de tertúlia, sou mesmo capaz de dizer que se encontrasse um cidadão a atear um fogo numa floresta o amarrava a um pinheiro enquanto tentava apagar o fogo. e, na azáfama da tarefa que tinha entre mãos, talvez me esquecesse dele.

não me ligam, pois, ao fogo nem as melhores recordações nem os melhores sentimentos.

tenho ido aprendendo que a vida tem sempre capacidade de nos surpreender pela positiva, se conseguirmos olhar sob perspectivas diversas o que nos vai acontecendo em redor.

hoje a diferença chama-se sicasal.

trata-se de uma empresa de transformação e embalagem de produtos alimentares, situada na malveira, concelho de mafra.

na semana passada, manhã cedo, o fogo invadiu parte das instalações onde havia já trabalhadores a laborar.

a empresa emprega cerca de 600 funcionários, que na situação de crise para a qual nos atiraram ficariam na miséria sem o trabalho que alimenta as famílias e que dá dignidade aos homens.

hoje o trabalho é um bem raro, que tem que ser dividido com bom senso para chegar para todos.

a meio da manhã, as televisões transmitiam reportagens do quase rescaldo do incêndio brutal. chovia em boa hora, e ventava, aquele vento do oeste que se entranha até aos ossos. mas os trabalhadores não arredavam pé, como se uma parte de cada um deles estivesse a ser consumida naquele braseiro, e não a pudessem deixar para trás.

quando já se prognosticavam os piores presságios de desemprego, um grupo de trabalhadores regressa de uma reunião com o patrão.

não, não ia haver despedimentos, nem quebra de salários para os que tivessem que ficar em casa durante algum tempo.

ele, o patrão, filho ou neto do fundador, só se deixou filmar depois de ter afogado a angústia dos seus colaboradores e a sua própria, na esperança que a força solidária tem sobre as limitações humanas.

homens e mulheres começaram a auto-organizar-se. havia líderes naturais, recordo que uma era imigrante.

os homens fariam piquetes de segurança durante a noite, para que a fábrica esventrada não fosse objecto de vandalismos de qualquer tipo. as mulheres organizaram-se em brigadas de limpeza, à disposição dos bombeiros e da protecção civil.

os que sobravam foram integrados nos departamentos que se encontravam em condições de funcionar mal a energia eléctrica pudesse ser restabelecida.

a única autoridade que vi foi o presidente da junta de freguesia, também ele trabalhador da fábrica quase desde a fundação.

estavam lá todos os que faziam falta; quem não estava e deveria estar pode ser integrado no tal quadro de mobilidade que inventaram.

percebia-se a cultura daquela fábrica, percebia-se a cumplicidade e sobretudo a solidariedade. percebia-se que um novo paradigma de relações laborais estava a passar por ali. percebia-se que, se os homens quiserem, podem fazer a diferença, mesmo na crise.

tinha acabado aqui esta crónica quando no meu e-mail caiu, mandada por mão amiga, a seguinte mensagem: «solidariedade com a sicasal: vamos comprar produtos da sicasal e doá-los ao banco alimentar».

este é o caminho para a construção do ‘nós solidário’.

catalinapestana@gmail.com