Contratos blindados?

Li com atenção o esclarecimento feito, ao abrigo do n.º 24 da lei de Imprensa, pelo Ministério da Segurança Social.

tratava-se de clarificar a ‘herança’ de uma viatura de luxo para o serviço de sua excelência o ministro que, com um ar jovem e convicto, foi à cerimónia de tomada de posse do governo ao qual pertence na sua lambreta pessoal, com o respectivo capacete enfiado na cabeça.

nesse dia, ele virou herói da meia dúzia de adolescentes que vêem os telejornais e prestam atenção ao que parece diferente.

o referido esclarecimento explica detalhadamente que o contrato da viatura oficial atribuída ao ministro expirou poucos dias após a tomada de posse, e que este pediu à central de compras do estado que a substituísse. e a central de compras só tinha disponível o audi em questão, encomendado pelo secretário de estado da energia do anterior governo, dr. carlos zorrinho, que não teve tempo de usufruir do seu conforto.

aparentemente, estava esclarecido o ‘escândalo’.

desci à rua, contei a história aos meus amigos velhos, que jogam às cartas e lêem à vez o correio da manhã que os restaurantes da zona têm disponível até à chegada dos primeiros clientes para o almoço, e eles foram comentando:

– não podiam devolvê-lo por causa do contrato? grande lata! eu descontei 40 anos e trabalhei 50. disseram-me que o contrato era ter uma reforma para o resto da minha vida. não podem alterar o contrato com a siva? então como podem alterar o contrato com milhões de portugueses trabalhadores ou aposentados?

– este mês a minha reforma já trouxe 50% a menos no subsídio de natal. não me perguntaram se eu autorizava a alteração do meu contrato. não me perguntaram sequer se eu queria fazê-lo, quando me começaram a descontar para a reforma, antes mesmo de receber o ordenado – e agora não são capazes de trocar um carro por dois que faziam o dobro do serviço?

– ainda ontem o marido da lucy, ali do largo, teve uma cólica renal, berrava como um bezerro desmamado. chamaram os bombeiros, que queriam 25 euros para levar o homem ao hospital. eles não tinham. é fim do mês. não fosse a ajuda dos vizinhos e o homem até podia ter morrido ali ao abandono».

eu estava esclarecida. não é só a minha tradicional intolerância perante os actos de todos aqueles que detêm o poder que o povo lhes empresta. os velhos meus amigos, que passam parte do dia debaixo das oliveiras ou na esplanada coberta da dona ju, percebem muito bem que estão a ser roubados todos os dias – e que não existe qualquer tipo de polícia conhecida à qual apelar, porque ela também é roubada todos os dias.

percebem muito bem que o poder político só é poder perante os que dependem dele.

percebem muito bem que o senhor bem-falante que faz agora o papel de polícia bom, e que é primeiro-ministro, é igualzinho ao senhor de voz grossa que fazia de polícia mau, e foi primeiro-ministro no governo anterior.

percebem muito bem que a dívida e a crise não são da sua responsabilidade, mas que são eles que, qual rebanho de mansas ovelhas, vão ter que a pagar.

percebem bem que é uma mulher mal amada, e mal formada, e mal acabada, que junta em si o pior que têm os homens quando exercem o poder, que dita as leis na europa, perante a incapacidade das outras mulheres e dos homens que tinham o dever de lhe fazer frente.

os meus amigos percebem, mas ainda não sabem verbalizar. um dia saberão.

o que os meus amigos talvez não percebam ainda é que estamos já a viver a iii guerra mundial, sem trincheiras nem bombardeamentos.

trata-se do capital, dos mercados, contra todos os estados.

é tão complicado que, como o dinheiro do inimigo é virtual, se aceitarmos o desafio pareceremos d. quixotes cavalgando atrás de moinhos de vento.

e tudo isto a propósito de uma viatura topo de gama.

catalinapestana@gmail.com