A tragédia de Robert

Pergunto ao leitor há quanto tempo um filme, um livro ou um álbum não lhe estremecem as emoções como uma granada?

dependerá, presumo, da geração a uqe pertence. o escriba tem a sensação de que a esmagadora maioria dessas obras destinadas a enformar os nossos tops simbólicos de predilecções reúne-se, sobretudo, naqueles anos decisivos da maturação, do crescimento e formação da personalidade. daí resulta que, passando – no máximo – os 25 anos de idade, vá, fica cada vez mais difícil uma determinada peça artística penetrar a muralha entretanto levantada. é natural: o cimento do cinismo é forte. já não é qualquer coisa que nos surpreende ou enche as medidas. às vezes torna-se mesmo recomendável não rever as obras marcantes, às quais nos habituámos a tratar como ‘o meu filme favorito’ ou ‘um dos melhores álbuns de sempre’, pois corremos o risco do nosso eu actual resolver humilhar o eu anterior, bem mais ingénuo, susceptível, puro.

serve esta introdução para deixar veemente o espanto sentido com o último livro que li, capaz dessa lança em áfrica: trepar o top invisível dos favoritos aos 34 anos do seu leitor. a life too short – the tragedy of robert enke, da autoria do alemão ronald reng, começou por apanhar-me da forma mais inusitada: era rigorosamente o único livro naquele quiosque de covent garden aparentemente destinado à venda de bijuteria (colares, brincos, pulseiras, etc). pensei até que fosse a leitura actual deste comerciante londrino em particular até reparar que a edição inglesa de capa dura, devidamente assinalando a obra como vencedora do prémio william hill (sports book of the year), também incluía um pequenino autocolante com indicação manuscrita do preço – 5 meras libras. uma pechincha.

ronald reng é um jovem jornalista alemão, autor previamente premiado, que se tornou amigo de enke após ser um dos raríssimos conterrâneos que resolveu reportar sobre a passagem do guarda-redes por portugal, ao longo de três épocas ao serviço do benfica. munido de extensas entrevistas com agentes, treinadores, colegas, amigos e até vizinhos e senhorios do amigo robert, sem contar com o inestimável contributo da mulher, teresa, reng consegue em cerca de 400 páginas um equilíbrio notável entre a luz e as trevas. como escreveu o guardian: «an intensely moving book that transcends football». graças à amizade que os unia e ao apoio da família do malogrado guarda-redes, reng utiliza mesmo excertos do diário de robert enke, para quem a ideia de contar um dia a sua história parecia significar muito.

enke suicidou-se em novembro de 2009, aos 32 anos, durante a sua segunda depressão, após azares relativos – como ter apanhado grandes clubes longe do seu auge (o benfica de vale e azevedo, o barcelona de van gaal) –, tragédias maciças – a morte da filha biológica aos dois anos, gravemente enferma desde o nascimento – e quando – após algumas épocas brilhantes ao serviço do modesto hannover, da bundesliga – estava prestes a ser o n.º 1 da alemanha, auto-intitulada pátria dos guarda-redes, no campeonato mundial da áfrica do sul.

num parêntesis nada despiciendo, lamento que os jornais desportivos nacionais se encontrem aparentemente à espera da edição portuguesa – é que há um par de ‘furos’ à espreita neste livro: como a revelação de que carlos bossio, guardião argentino profundamente infeliz, terá sido contratado pelo slb para acautelar o desejo repentino de robert não cumprir o acordo assinado com o clube da luz durante uma sua primeira tormenta (achou-se subitamente demasiado jovem para mudar de país e perdido numa terra estranha). essa angústia demorou um verão inteiro até jupp heynckes, jorg neblung e teresa enke, respectivamente treinador, agente e esposa, o persuadirem do contrário. ou, mais interessante ainda, o minuciosamente descrito assédio de pinto da costa ao guardião encarnado, aqui resumido em três penadas: a) um intermediário do fcp apresenta ao agente de enke uma proposta de 10 milhões de euros (!) livres de impostos por um contrato de três épocas; b) seduzido pelos valores astronómicos, o seu agente leva robert a uma casa de cascais onde são recebidos pelo presidente portista que, acompanhado pelo referido intermediário, desmente categoricamente essa oferta mas avança uma proposta ainda assim muito superior ao que o alemão recebia no benfica; c) enke termina abruptamente a reunião e diz ao agente que nunca poderia assinar pelo fcp pois ‘é benfiquista’. assim se demonstrando que a aparente tradição portista de assediar futebolistas encarnados vem de (bem) longe.

nesta espantosa biografia, tão dura quanto comovente, emocionam a fragilidade e o carácter deste homem muito distante do futebolista-tipo, a bravura estóica, compaixão resiliente e amor da sua mulher, a apreensão plena da depressão como uma doença atroz, espécie de ‘cão negro’ insinuante que morde por dentro todos os desejos e escolhas até a decisão de morrer se tornar não um fim mas uma saída, e muito mais ao qual não consigo fazer jus.

o livro termina com uma memória de robert e teresa, na sua casa de sintra, à qual voltavam sempre que possível, pouquíssimos meses antes da segunda depressão. robert, como habitual, gaba a vista do palácio da pena e a mulher ralha-lhe com doçura por nunca lá terem ido. é nesse mesmo palácio, com o pc sobre os joelhos, que termino a crónica. o meu antigo eu exulta com a homenagem inútil a um anjo caído.

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