A mãe, a crise e os sapatos

A mãe sente já os efeitos da crise no dia-a-dia em que tem de gerir um orçamento familiar dessa classe média atacada por doença incurável.

o filho tem problemas motores – e, na luta de muitos anos para lhe proporcionar uma existência equilibrada, ela procurou soluções muitas vezes mais caras, num país que não percebe o que as coisas são por dentro.

o filho anda melhor com sapatos shape-up que se vendem apenas nas sapatarias skechers.

como presente de aniversário para os seus 39 anos, a mãe decidiu oferecer-lhe os sapatos que, para ele, deviam ser um direito, sem iva e sem preço.

a saga começou.

a loja mais próxima que o site na internet indicava situava-se num dos hipermercados de alfragide.

tomou o autocarro, mas, chegada ao local indicado, verificou que a loja fechara. continuando como cidadã actualizada a seguir as indicações do site, constatou que a loja mais próxima era nas amoreiras.

uma outra mãe, desconhecida, disse-lhe que um dos autocarros gratuitos ia para o marquês de pombal.

continuou a peregrinação. a loja estava aberta mas não tinha sapatos daquela marca. informaram-na que existia outra no hipermercado redondo em frente do estádio do benfica.

meteu-se no metro e foi para lá.

só tinham um par, número 35. os funcionários tentaram contactar telefonicamente outra loja no parque das nações, para saber se dispunham do número desejado.

em vão: ninguém atendia.

solícita, a funcionária pediu à mãe:

– se a senhora pudesse ligar do seu número, seria mais fácil. os meus colegas devem ter a loja cheia e, como reconhecem o número de outra loja, não atendem.

a mãe ligou do seu telemóvel e foi atendida.

responderam-lhe que dispunham do par de sapatos pretendido, e que podiam guardá-lo se o fosse buscar ainda nesse dia.

exausta, mas compensada no seu esforço, a mãe voltou a tomar o metro para o centro comercial do extremo oriental da cidade.

o cansaço era grande, a noite descera há muito.

dentro de mais esta catedral do consumo as pessoas enchiam os corredores e olhavam as montras de lojas vazias, os neóns publicitários confundiam-na, não encontrava a prometida loja.

pegou no telemóvel e ligou mais uma vez. era no primeiro andar. subiu, constatou que já lá tinha passado duas vezes e não a vira.

– venho buscar os sapatos que estão guardados. telefonei há 5 minutos.

duas funcionárias, sofisticadamente vestidas e maquilhadas, disseram não ter quaisquer sapatos reservados. chamaram outro colega que também não tinha conhecimento de nada.

– só se quem a atendeu ao telefone foi a mariquinhas – aventaram – mas já saiu.

a mãe gelou de frustração e de raiva.

evocou três vezes a memória da avó camila, e a cuidada educação que lhe dera, para não começar a vociferar impropérios.

a crise não é só económica e financeira.

a crise não é só corrupção, compadrios, obediências cegas às várias formas de igrejas.

a crise não é só a infame forma de distribuir os bens, que coloca portugal no topo da escala de desigualdades sociais, segundo o último relatório da ocde.

a crise é mais profunda, está em cada um de nós. chama-se irresponsabilidade, desrespeito, negligência, sobranceria.

e esta vertente da crise só poderá ser ultrapassada quando o modelo educativo, na família, mais do que na escola, tiver dado uma volta de 360 graus.

catalinapestana@gmail.com