Olha-me aqueles calções curtinhos.

O Sol impôs-se e está brilhante. Finalmente. O advérbio. Não a casa de espectáculos travestis.

Embora brilhante faça lembrar lantejoulas e a atitude do Sol perante as nuvens seja de diva – bitch, please – e o faça continuar a reinar no pedaço.

Mais calor. Menos roupa. E eu aqui a constatar o óbvio que nem um “life coach”.

Ela passa na rua. Vai leve. Vai jovem. Vai de ténis rasos, calções curtinhos, assentes na fronteira traseira entre o bom gosto e o despudor gratuito. Vai de top de alças com um decote determinado e descomplexado.

Cruza-se com um tarado. Nem parecia. Veste fato e gravata. É um banqueiro bem-sucedido e usa aliança com a leveza de uma água com gás na esplanada. Mas é. E olha para ela de forma ostensiva, prolongada e com aquela espuminha branca, aquele jacuzzi para bactérias, a formar-se nos cantos da boca. Persegue-a durante uns bons 100 repugnantes metros. Depois vai para casa consolar-se sozinho enquanto a mulher cozinha para ele.

Cruza-se com um hipócrita. Nem parecia. Veste algo aparentemente moderno, mas o tecido de conservadorismo bacoco está lá no forro. É vergonhoso que ela ande assim na rua. Mas ele quer tanto tê-la ao mesmo tempo. Diz que é uma vergonha. Pensa que lhe quer tirar o resto da roupa. Depois segue o seu caminho misógino, enquanto decide se mais tarde vai à missa ou ao Elefante Branco.

Cruza-se com uma feminista. Nem parecia. Usa soutien porque aquilo afinal não aperta tanto como os dogmas que carrega. Mas é. E aqueles calções curtos são a desgraça das mulheres. É por causa deles que há diferença salarial entre géneros no mesmo cargo. É por causa deles que há barbeiros só para homens onde elas também gostavam de poder aparar a sua vaidade. Eram aqueles calções curtos que ela também queria poder usar sem preconceitos. Ai, merda. Não queria nada. Está confusa. Vai para casa ver o Sexo e a Cidade às escondidas.

Cruza-se com um vegetariano. Nem parecia. Passeia um cão que não se chama Tofu nem Soja. Mas é. Olha as pernas dela como se fossem dois elegantes espargos e pulsa-lhe o desejo de a barrar em bagas de goji e sementes de sésamo, enquanto vêem o Cowspiracy. Segue o seu caminho e tenta não pensar no pedaço de carne mais apetitoso a que teve de resistir nos últimos tempos.

Cruza-se com um cavalheiro. Nem parecia. Vestia uns calções, t-shirt e óculos escuros. Roupa tão simples quanto intrincados os pensamentos. Ajuda velhinhas na passadeira e deixa as pessoas saírem das lojas antes de forçar a entrada, mas, como todos os outros, também quer esbanjar luxúria naqueles calções curtos. Sabe estar, sabe falar. Convida-a para um café ou para uma aproximação digital via Facebook. Sem sucesso. Era o único decente, mas não parecia.

Os calções curtinhos seguiram o seu caminho. Ela até queria aquele café. Mas ninguém parecia o que era. Nem o que era certo. E é mais fácil pôr tudo no mesmo saco do que procurar as diferenças.

 

Ela arriscou nos calções. Não arriscou em mais nada.

E ficou tudo na mesma.