Quando os humoristas deixam de ter piada

De quantos povos tenho conhecido, os russos pareceram-me até hoje os mais destituídos de sentido de humor. Quando vão tirar uma fotografia, por exemplo, em vez de se rirem para a câmara, fazem uma cara de enterro. Assim que a objectiva dispara, os seus músculos faciais voltam a descontrair. Por outro lado, muitos têm vocação…

Após pensar um pouco no assunto, deduzi que essas atitudes fossem sequelas de um regime repressivo, castrador e autoritário – cicatrizes do passado soviético.

Uma vez que nasci após o 25 de Abril, tenho dificuldade em aperceber-me das marcas da ditadura na mentalidade dos portugueses. Não sei se a diminuição do sentido de humor foi ou não uma delas. O que é certo é que, à medida que nos afastamos desse período, vamos assistindo a um boom do humor e dos humoristas. Muitos deles são da minha geração, ou seja, nasceram já durante a democracia.

Esta voga tem aspectos positivos. O público tornou-se mais exigente. Apareceram alguns humoristas muito bons. Surgiu uma variante do humor inteligente e sofisticada. Foram-nos dados a conhecer deliciosos exemplos de humor vindos de outras latitudes.

Mas também houve aspectos negativos. De um momento para o outro, não há cão nem gato que não se ache um expoente do non-sense, o que levou ao aparecimento de humoristas sofríveis ou até medíocres. Depois, há o endeusamento de Ricardo Araújo Pereira (cujas qualidades muito aprecio), que levou a um aproveitamento excessivo da sua imagem. É preciso não ter qualquer sentido crítico para não considerar os omnipresentes anúncios à Meo insuportáveis. Por fim, muitos humoristas acreditam que o estatuto recém-conquistado lhes confere uma certa impunidade para dizerem tudo o que lhes apetece. Ainda que sejam disparates pegados.

Se olharmos com atenção, veremos que muitos humoristas são hoje comentadores da realidade (e não me refiro à participação de RAP no Governo Sombra). Tornaram-se uma espécie de rezingões de serviço que acreditam ser sua missão zurzir tudo e todos, à esquerda e à direita. Já não criam situações verdadeiramente cómicas – limitam-se a vampirizar as notícias à procura das suas vítimas. E por vezes usam de uma agressividade e de uma violência desmedidas, amesquinhando os alvos mais fáceis ou aqueles com cujas opiniões não concordam.

O mais curioso é que, ao contrário do que poderíamos esperar, normalmente estes humoristas são bastante previsíveis nas suas escolhas. Ora, toda a gente sabe o que acontece quando já conhecemos o final da anedota. É isso mesmo: pura e simplesmente deixa de ter graça. 

jose.c.saraiva@sol.pt