O ‘não’ de Sócrates

Só uma personalidade extremamente narcísica e alheada da realidade poderá afirmar: “Somos o que escolhemos ser”. As nossas escolhas são cercadas por circunstâncias e acasos diversos, a começar pelo país onde nascemos, família, educação, encontros, oportunidades. A própria ideia de liberdade depende de um mínimo de conhecimentos e informação; a jovem e valente Malala teve…

Esta semana, José Sócrates veio recordar-nos que a dignidade essencial do ser humano reside na sua capacidade de dizer 'não'. Essa dignidade faltou aos milhões de alemães cúmplices da abjecção nazi: acabei de ler A Zona de Interesse, um extraordinário romance onde Martin Amis descreve a vida dos chefes e burocratas de Auschwitz e mostra a que ponto indivíduos ditos 'normais' são capazes de se desumanizar e de pactuar com a ignomínia total. Todos encontramos, ao longo da vida, pessoas que não hesitam em torpedear e espezinhar os outros para se afirmarem diante dos chefes, ou para chegarem a chefes, alegando que apenas 'obedecem a ordens' ou que 'não têm outra solução'. O agora famoso bullying juvenil é o campo de treinos desse nazismo light que cresce insidiosamente sob a capa da democracia, nesta década de medo em que a política se demitiu da sua central função ética.

Um candidato a primeiro-ministro não pode de facto, como disse António Costa, comentar casos judiciais concretos – mas pode e deve ter uma opinião sobre o instituto e a duração da prisão preventiva, bem como sobre o seu carácter pré-punitivo e intimidatório. Eu, pelo menos, preciso de saber o que pensa sobre esse assunto alguém que pede o meu voto, porque entendo que a Justiça é o sistema respiratório do Estado de Direito.

Os nazis matavam imediatamente os que se referissem às suas vítimas como 'pessoas', 'mortos' ou mesmo 'corpos'. Só admitiam a designação de 'peças'. A pretensa 'igualdade de tratamento' que o actual sistema judicial atribui aos acusados vai no mesmo sentido de desumanização; são todos peças: não há engenheiros, médicos, escritores nem carpinteiros, cada um com a sua história, a sua singularidade, a sua humanidade particular  –  são todos o sr. José (ou Joseph K.), perante suas sumidades os senhores doutores magistrados. Habituamo-nos. Achamos tudo isto natural. Mas não é.

Ao negar o seu acordo à única medida de coacção que depende desse acordo, José Sócrates afirma-se como homem interiormente livre que age de acordo com a sua consciência: se reputa a sua prisão como injusta e até agora injustificada, obviamente não pode compactuar com novas fórmulas dessa detenção, mesmo ou sobretudo se representarem maior conforto físico para ele. A ética não é uma loja de conveniência.

Não sei, nem ninguém de boa-fé pode saber, se há algum fundamento objectivo para esta prisão de mais de seis meses, pela simples razão de que não existe, até agora (escrevo na terça-feira), qualquer acusação formada. Tenho por princípio não me orientar por mexericos nem julgar quem quer que seja pelo seu estilo de vida ou pela intimidade das suas relações de amizade. Mas sei que José Sócrates deu esta semana um exemplo de respeito por si próprio (que é a base do respeito pelos outros), grandeza ética e desassombro, três coisas de que tenho sentido muita falta em Portugal.      

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Crónica originalmente publicada na edição em papel do SOL de 12/06/2015