Queiramos ou não, todos escrevemos com o Acordo

Há cerca de nove anos, quando comecei a escrever aqui no Sol, dediquei uma crónica ao Acordo Ortográfico. 

Intitulada 'Contra as boas regras da ortografia', criticava duramente o grande mentor do projecto, o professor Malaca Casteleiro. Além disso, apontava algumas falhas ao Acordo e lamentava o facto de ele desconsiderar a etimologia. Preocupava-me que a nova grafia fizesse com que, aos poucos, perdêssemos contacto com a origem das palavras e o seu sentido primitivo.

Ora, como não vivia da actualidade, esse artigo foi posto de reserva para algum dia em que me faltasse assunto ou em que, por qualquer motivo, não pudesse escrever. E ali ficou na gaveta, à espera de oportunidade para ser publicado. Nunca chegou a ver a luz do dia.

Acontece que, ao fim de algum tempo, eu já não me revia totalmente naquelas palavras. Primeiro, comecei a ter dúvidas. Depois, ao ouvir os argumentos de uma e de outra parte, acabei por mudar de opinião. Se ao princípio escrever espectáculo sem 'c' ou batismo sem 'p' me parecia uma questão de vida ou de morte (da língua, não minha), hoje encaro essas mudanças sem dramas. Até porque, para minha surpresa, descobri entretanto que a queda das consoantes era um processo já em curso muito antes de se discutir o Acordo. Passo a explicar.

Há tempos,  numa feira de rua perto de casa, encontrei uma segunda edição de Lisboa Galante, de Fialho de Almeida, um livro impresso em 1904. Ao percorrer as suas páginas, deparei-me com este trecho curioso: «A primeira pharmacia […] produziu  tamanha emoção que os jornaes lhe consagravam folhetins descriptivos; e por dias esteve o transito interrompido, tão espessa turba se agregava ante o sumptuoso laboratório». 

O que me chamou a atenção não foi tanto a pharmacia ou os jornaes, mas sim os folhetins descriptivos e o sumptuoso laboratório. Enquanto neste segundo caso o 'p' se manteve, no primeiro caiu – e não me parece que tenha vindo grande mal ao mundo por causa disso.

Ora, se escrevemos hoje descritivo, construção, tratado, tradição e manuscrito, por que há-de fazer-nos tanta confusão a ortografia de palavras como suntuoso ou objetivo? Será que também queremos voltar a escrever construcção, tractado, tradicção ou manuscripto?

Não creio, e daí deduzo que a oposição às novas regras se deve sobretudo a conservadorismo e não tanto à defesa da língua, como tanto apregoam os críticos do Acordo de 90. Na verdade, este limita-se a completar um processo (queda das consoantes) que já estava em curso. Embora nunca nos tenhamos dado conta disso, todos escrevemos com o Acordo. Até aqueles que o atacam com violência. 

jose.c.saraiva@sol.pt