Seis meses depois, a redacção do semanário satírico francês lida diariamente com as recordações traumáticas do ataque, mas também com desavenças internas relacionadas sobretudo com dinheiro.

‘Quando o dinheiro divide’. A expressão, que tem sido usada pela imprensa internacional, resume a situação que se vive na redacção do semanário satírico francês Charlie Hebdo. Os sobreviventes do ataque terrorista de 7 de Janeiro exigem transparência nas contas – cujas receitas aumentaram em flecha com as vendas, sem contar com os donativos – e pedem para se tornarem sócios equalitários no jornal, enquanto a direcção dá respostas ambíguas e diz que só pensará em reestruturações a partir de Setembro.

 Os sinais de desconforto surgiram logo a 19 Março, quando um e-mail assinado por 15 dos 20 trabalhadores do Charlie Hebdo – entre os quais Rénald Luzier, cartoonista conhecido por Luz, que desenhou a primeira página do jornal na edição seguinte ao atentado – chegou à imprensa francesa.  A mensagem era clara: a equipa do Charlie denunciava opacidade nas operações financeiras e pedia para ser associado e informado das decisões.  Mas terá sido  o último pedido que provocou  maior desconforto entre os accionistas, segundo noticiou o Le Monde: esses 15 traballhadores reivindicavam que a publicação, que sempre teve um cariz familiar, passe a funcionar como cooperativa.

Familiares ainda não receberam donativos

Antes do ataque de 7 de Janeiro realizado pelos irmãos Kouachi, que matou no total 12 pessoas, a publicação  tinha uma tiragem entre 24 mil e 50 mil exemplares semanais. A ‘edição dos sobreviventes’ vendeu um número histórico de oito milhões de cópias e estima-se que a o total das vendas semanais estabilize, no mínimo, nos 100 mil exemplares, mais do dobro do que antigamente. Além disso, há agora 200 mil assinantes, comparados com os oito mil que existiam  antes do atentado, e a facturação ronda os 12 millhões de euros.

Por outro lado, o Charlie Hebdo foi inundado de doações. Segundo o britânico The Guardian, a publicação recebeu dinheiro de filantropos em 84 países e embolsou um milhão de euros do Estado francês, 250 mil euros da Google e 100 mil libras do The Guardian Media Group. Segundo a direcção do jornal, este dinheiro será entregue aos familiares das vítimas – promessa que, até agora, ainda não foi cumprida.

Alguns membros da redacção que têm sido citados pela imprensa francesa descrevem estes milhões como «envenenados» e contam  que o ambiente no jornal, antes leve e brincalhão, tornou-se «insuportável», pois  não concordam com o modo como o jornal está a ser gerido.

Quem são, afinal, os donos?

Após o ataque, o Charlie Hebdo passou a ter três sócios:  40% são do actual editor, Laurent Sourrisseau (’Riss’), 40% dos pais de Stéphane Charbonnier (Charb, o anterior editor, morto no atentado) e 20% do director financeiro Eric Portheault. Mas esta repartição é do tempo em que as acções da empresa valiam muito pouco.

Riss já fez saber que é contra a transformação em cooperativa, mas concorda que a publicação, que continua a funcionar  temporariamente num dos pisos do jornal Libération, «vive uma situação peculiar».

Os problemas, porém, não ficam por aqui. O cartoonista ‘Luz’, que se tinha tornado o nome maior da publicação com o súbito desaparecimento de parte da força motriz do Charlie (dos 12 mortos, oito pertenciam ao núcleo duro do jornal, entre eles o editor, Charb, e os cartoonistas Cabu, Tignous e Wolinski), anunciou, entretanto, que vai sair em Setembro. Fez saber, no entanto, que a saída «não está relacionada com as tensões dentro do jornal»: ‘Luz’ diz que «é uma escolha pessoal», porque «continuar sem os colegas é uma tortura».