O ódio ao ódio gratuito

Primeiro, informe-se dos factos. Depois, pode distorcê-los quanto quiser – Mark Twain.

conversas na aldeia global. um ciclo de palestras informais organizado pela biblioteca municipal de oeiras. tive o prazer de ser o convidado na última (e bem agradável) sessão, moderada pelo jornalista vasco trigo, que – a páginas tantas – perguntou se os humoristas poderão ser considerados os novos cantores de intervenção. «julgo que ainda não», respondi, embora haja quem tenha características e potencial para isso. «quem me dera», acrescentei. e fui para casa agradado pela perspectiva. sim, numa sociedade onde uns poucos grupos económicos monopolizam quase todos os órgãos de comunicação, onde temos vindo a assistir a ingerências de interesses económicos e políticos nas linhas editoriais, há um campo de liberdade de acção que diminui para uns talvez na mesma medida em que aumenta para outros. os comediantes devem ter uma responsabilidade social? sem dúvida.

rapidamente, contudo, o estado de espírito mudou. bastou chegar um novo dia e ir ao facebook. aí tomei conhecimento de rodrigo nogueira, colaborador do público, e do seu texto intitulado ‘o ódio pela comédia’ (p3). deste constam frases como: «césar mourão tem programas de tv, apesar de não ter talento […] uma sociedade que se sente confortável com isto e não oferece alternativas é uma sociedade que odeia rir. temos uma classe deplorável de humoristas, gente que não tem referências cómicas suficientes para expandir os seus parcos horizontes. ter visto episódios de monty python, seinfeld e o escritório […] não faz com que se tenha sentido de humor».

enquanto ganho fôlego para o resto da crónica, é importante dizer isto desde já: rodrigo nogueira tem obviamente todo o direito à sua opinião e à exposição pública da mesma. este (ainda) é um país livre, apesar do consulado socrático; por essas e por outras é que não me parece que os comediantes possam ser considerados uma versão contemporânea dos cantores de intervenção. mas aborrece-me a política da terra queimada, a ligeireza de declarações bombásticas sem real sustento. no fundo, um tipo de estratégia comum a diversos escribas: mandar uma atoarda para chamar a atenção, causar polémica, o que por arrasto atrai leitores. é uma linha que tem feito escola, mas não será isso que me fará catalogar toda uma classe de colunistas/cronistas.

tal como disse, não conhecia o autor. segundo a apresentação anexa ao seu espaço: «rodrigo nogueira escreve e faz outras coisas». peço licença ao leitor. permita-me uma pequena pausa para gargalhar com esta espirituosa epígrafe. já está.

imagino que as ‘outras coisas’ a que se dedica roubem demasiado tempo a rn. nunca deve ter escutado nuno markl ou fernando alvim na rádio; não conheceu os tempos áureos de cabaret da coxa; último a sair – ainda por cima um formato original – passou-lhe decerto ao lado; estava fora do país quando cqc fazia um milhão de espectadores todas as semanas e arreliava sobremaneira a classe política; ninguém nos contemporâneos o fez esboçar um sorriso; nunca viu actuar pessoas como antónio raminhos, luís franco-bastos, aldo lima, hugo sousa, salvador martinha; desconhecerá o que já escreveu gente como joão quadros, filipe homem fonseca, frederico pombares, pedro m. ribeiro, josé pina ou rui cardoso martins; a coragem de jel escapou-se-lhe, a sintonia do portugalex também; jamais passou os olhos pelos cartoons de luís afonso ou ricardo galvão; não reparou no anunciado regresso à antena de 5 p/a meia-noite – dando o salto, inédito, para a rtp1, após cinco séries a fidelizar centenas de milhares nas madrugadas da 2 (não compreende a carreira de nilton? faça uma pesquisa pelo nome dele no youtube).

não há alternativas? arranje um tempinho e procure a edição extra na internet, ou fenómenos de culto como bruno aleixo, mundo catita ou na casa deste senhor, pesquise a quantidade inusitada de raparigas a surgir no humor, passe pelas sessões de ‘improv’ na comuna, visite os cientistas de pé, pergunte sobre o intercâmbio crescente com o brasil na área do stand-up, descubra o que instituições semi-amadoras como a bang têm feito para lançar miúdos que – muito depois do boom originado pelo levanta-te e ri – actuam um pouco por todo o lado e, se tiverem sorte, recebem um cachet de 50 euros… aproveite para se sentar à mesa, no final, com pedro alves, rui moreira, joana santos, pedro soares, joana gama, hugo rosa e muitos outros. garanto-lhe que é capaz de sair elucidado sobre influências/referências como nick swardson, mitch hedberg, bill hicks, daniel tosh, bill maher, wanda sykes, george carlin, demetri martin, louis ck, lenny bruce, steve coogan, frank caliendo, jim gaffigan, tina fey, jimmy carr ou andy samberg.

ou por que não contribuir para o pib e seguir o exemplo dos milhares de portugueses que já foram assistir a um espectáculo dos commedia a la carte? se depois disso ainda achar que césar mourão não tem talento (já agora, recorde-o em hora h), então é porque não saberia reconhecê-lo mesmo se tivesse nascido com ele. há quem seja intolerante à lactose. dou-lhe, todavia, alguma razão num ponto – e cito: «portugal odeia comédia. só assim se explicam umas quantas coisas estapafúrdias que não aconteceriam em lado nenhum». como por exemplo, caro rn, o tom do seu texto.

lfb_77@hotmail.com