Será amor?

Começa a ser assustador o número de crimes chamados ‘passionais’ que ocorrem em Portugal.

Com uma regularidade impressionante, vemos notícias de homens que mataram as mulheres, as ex-mulheres, as amantes, as ex-amantes, as namoradas ou as ex-namoradas. As histórias são quase todas iguais ou muito parecidas: as mulheres pretendem deixá-los – e eles não aceitam. Resistem, assediam-nas, ameaçam-nas – e em casos limite acabam mesmo por matá-las.

Inês Pedrosa tem escrito com frequência sobre este tema. E bem. Só tenho dúvidas a respeito de uma afirmação que recorrentemente faz: que não se mata por amor. Que os homens que matam as mulheres não as podem amar. Ora, não tenho certezas nenhumas sobre isso. O amor exacerbado conduz muitas vezes ao ciúme doentio, e daqui ao crime pode ser um pequeno passo. ‘Se não és para mim, não serás para ninguém’ – é isto que move os assassinos passionais.

Esses homens não admitem ver a mulher que amam – e da qual se sentem donos – a viver com outro homem. Existirá também nestes crimes uma componente machista, ou seja, os homens sentem-se ofendidos no seu orgulho de machos quando são substituídos por outros. Acham que a sua masculinidade, a sua virilidade, fica posta em causa. Se as mulheres os trocam por outros, se calhar é porque acham os outros melhores do que eles na cama. E isso mexe obviamente com o orgulho do macho.

É muito difícil nestas histórias terríveis destrinçar os sentimentos envolvidos. Nem os próprios protagonistas saberão bem o que os move. A verdade é que alguns destes homens se matam depois de matarem as mulheres. Matam-nas e matam-se a seguir – numa sequência que se percebe ter sido planeada com antecedência e que não é fruto das circunstâncias. Ora, se chegam ao ponto de se matar, é porque concluem que a sua vida sem elas não faria sentido.

E eu chamo a isso amor. Amor doentio, mórbido, patológico – mas amor. Não é verdade que o amor e a paixão têm muitas vezes uma componente obsessiva, exclusivista, doentia?

Mas, se estes casos começam a ocorrer com aterradora frequência, uma história que conheceu o seu epílogo na semana passada ultrapassa tudo o que poderia imaginar-se – e daria seguramente um grande argumento cinematográfico.

A história começou com uma operação às varizes de Anabela Pereira. Não sei se o acto cirúrgico era indispensável ou se foi determinado, pelo menos em certa medida, por razões estéticas. A verdade é que correu mal, muito mal. Uma artéria foi cortada inadvertidamente – e a perna da paciente teve de ser amputada dez centímetros abaixo do joelho. O marido, Augusto Borges, acompanhou-a sempre neste calvário, apoiou-a, consolou-a – e o caso ficou amplamente registado em vídeo, pois um canal de TV fez uma reportagem sobre ele.

Curadas as feridas, colocada a prótese no lugar, a mulher pediu uma indemnização pelo erro clínico, exigência que o tribunal viria a aceitar, estipulando o pagamento de uma quantia de cerca de 300 mil euros. Parece-me um valor ainda assim baixo para os tremendos prejuízos causados. Mas reconheço que não é fácil contabilizar quanto vale uma perna humana. Há muita coisa envolvida num processo como este, em que a maior parte dos danos não são contabilizáveis.

Mas a história ainda só vai no início.

Mal o juiz estipulou a indemnização a que a mulher teria direito, o marido decidiu desempregar-se e passar a viver dos rendimentos. E se bem o pensou melhor o fez. Logo que o dinheiro caiu no banco, foi para casa e começou a passar os dias de perna esticada.

É de admitir que, a partir dessa altura, a relação entre ambos se tenha deteriorado. Um homem ainda longe da velhice, metido em casa sem nada para fazer, torna-se muitas vezes quezilento. Por outro lado, não deve ser nada fácil viver com uma pessoa que de repente fica deficiente – transportando consigo enormes traumas físicos e psicológicos.

Os desentendimentos terão passado a ser o dia-a-dia do casal. Multiplicaram-se as discussões, houve episódios de violência doméstica, queixas à Polícia – até que a mulher terá manifestado a vontade de se divorciar e o homem terá mostrado intenção de aceitar a ideia.

Mas as negociações com vista ao divórcio depressa degenerariam em novos episódios violentos.

Palavra para aqui, palavra para ali, o homem terá exigido parte do valor da indemnização que ainda estava no banco, pois tratava-se de ‘bens adquiridos’ enquanto estavam casados. A exigência é macabra tendo em conta a origem do dinheiro – uma indemnização por amputação – mas a natureza humana tem destas coisas.

Anabela não acedeu às pretensões de Augusto, e as coisas azedaram ainda mais. Por fim, no meio de mais uma altercação, o homem apertou o pescoço da mulher com um lençol até lhe acabar com a vida. E assim terminou a história.

Este enredo, repito, podia dar o argumento de um filme.

A propósito, lembrei-me de O Tesouro da Sierra Madre, com Humphrey Bogart. É a história de três homens que, no Oeste americano, partem como milhares de outros em busca do ouro. Encontram-no, mas aí começam os problemas. Passam a desconfiar uns dos outros, a vigiar-se. Depois dois deles cumpliciam-se para matar o terceiro, para não terem de dividir o dinheiro pelos três. Finalmente, um mata o outro – mas nessa altura deixa cair os sacos com as onças do oiro e o pó doirado acaba por voar com o vento e misturar-se com a poeira, regressando à serra donde fora arrancado.

O caso sinistro da mulher amputada fez-me lembrar esta história.

A ganância pelo dinheiro cega. Tal como o amor doentio. Este criminoso matou a mulher porque queria que ela lhe desse parte do dinheiro que tinha no banco. Mas há outros que matam ‘só’ por amor. Matam sem outra razão envolvida. Um amor onde se mistura o ciúme, o sentimento de posse e o orgulho do macho ferido.

Ao contrário de Inês Pedrosa, acredito no suicídio e no assassínio por amor. O que não faz desses crimes, note-se, actos desculpáveis ou menos condenáveis.

Crónica originalmente publicada na edição em papel do SOL de 14/08/2015

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