Teremos perdido a vergonha?

Quando o Fred era pequeno, um dos seus amigos interpelou-o, dizendo: «Oh pá, vens para cá brincar comigo ou conversar com os meus pais?».

de facto, mal via um adulto que não estivesse completamente atarefado, o fred logo se sentava junto dele e começava a comentar as notícias do bairro, da cidade e do país, dando ainda uns toques nas notícias do mundo.

filho primeiro de um casal da classe média-alta, o fred mal via os pais – sempre atarefados, a trabalhar muitas horas, a concluir doutoramentos, a ir em serviço para o estrangeiro.

o fred era o dono da casa. dava orientações à empregada e zelava pelo orçamento doméstico, tendo mesmo posto um cadeado no telefone (que a dita utilizava descontroladamente, muitas vezes para o seu país de origem).

quando, por engano, os pais lhe deram um irmão, cedo foi ele quem sentiu a obrigação de o ajudar a crescer.

o fred amadureceu cedo demais. sabe fazer mil coisas que os jovens da idade dele nem sonham como se fazem.

sabe também pensar. como começou cedo a exercer essa competência, a escola nunca foi estimulante para ele. foi lá por obrigação, nunca por gosto. aprendeu a escrever em duas ou três línguas e partiu para o mundo do trabalho criativo. virou empresário.

há cerca de dois anos, ouvi uma conversa entre ele e o seu amigo de infância, enquanto bebericavam um refresco de limão verdadeiro:

«percebes, gioberti? se tu deveres cem mil euros a um banco, tu estás com um problema. o banco faz-te a folha! penhora-te a casa, o carro, o ordenado e queima-te o nome na praça. se não tiveres uma tia velha e rica que o altíssimo chame a si, estás feito num molho de bróculos.

mas, se deveres 50 milhões de euros a um banco, o problema inverte-se.

tu convidas o director do banco para almoçar e dizes com um ar afável mas assertivo: ‘o dr. está com um problema. eu devo-lhe muito dinheiro mas não disponho dessa verba. eu quero pagar-lhe, vou pagar-lhe num tempo que me permita não morrer antes de cumprir esse dever, mas com um juro que não me dê o direito de o considerar um agiota. vamos negociar!».

deve ser por ele não ter doutoramentos, não ser economista, nem jurista, nem engenheiro, nem trampolineiro, que nunca ninguém o convidou para ministro das finanças. ou para ministro de outra pasta qualquer, daquelas que determinam a qualidade da vida dos cidadãos.

sei é que, caso o fred participasse do exercício do poder, o protocolo que o país estabeleceu com as entidades representadas pela troika não teria sido negociado nos termos em que foi.

como diria o fred: sim, nós aceitamos pagar dívidas que não fizemos, em nome da dignidade de um estado que diz que nos representa, porque continuamos a votar em tudo o que eles dizem nas campanhas eleitorais. e como o povo é uma entidade de memória curta, esquece rapidamente o que eles fizeram da última vez em que tiveram acesso ao pote.

mas estamos a receber as últimas gotas de água necessárias para fazer entornar o copo.

uma escola dos arredores de lisboa decidiu cobrar a utilização de uma sala disponível até aí, usada por uma terapeuta da fala que, a expensas dos pais de uma aluna, vai duas vezes por semana ajudar essa aluna a ultrapassar dificuldades severas na fala, provocadas por uma trissomia 21.

todos lemos ou ouvimos a notícia – que ninguém desmentiu. uns dizem que é um caso isolado, outros que os seus filhos não têm necessidades educativas especiais, outros nem deram por isso.

o jovem fred, atento pai de três filhos, resolveria o problema em dois minutos. talvez de forma heterodoxa. e nós, caso não o façamos já, devemos mascarar-nos antes do carnaval – para que os nossos filhos, e os nossos netos, e os filhos dos senhores ministros e das senhoras ministras, não tenham vergonha de nós.

catalinapestana@gmail.com