O despertar de António Costa

António Costa ganhou o debate com Passos Coelho não apenas por mérito próprio – maior combatividade e objetividade na argumentação – mas, em larga medida, porque foi ajudado pelo extremo calculismo defensivo e a dissimulação do adversário.

O marketing da campanha da coligação apostara ostensivamente em resguardar o primeiro-ministro da exposição pública, levando-o a fazer de ‘morto’ tanto quanto possível. Já Costa, embaraçado pelos tropeções da campanha socialista e a não descolagem nas sondagens, precisava de libertar-se dos constrangimentos táticos que o vinham manietando. O seu despertar é uma boa notícia para animar uma campanha ameaçada pelo tédio e o vazio.

A tentativa de preservação de Passos Coelho não chegou para imunizá-lo e colocá-lo num pedestal. Pelo contrário, foi o excesso de cautela e manha que acabou por levar Passos a ir perdendo a vantagem que, à partida, muitos observadores lhe atribuíam no duelo.

Costa, que começou com semblante carregado perante o ar melífluo de Passos, foi ganhando confiança e desembaraço à medida que o debate progredia e só lhe faltou a arma suprema da ironia para encostar o adversário às cordas. Mas essa é também uma arma que pode voltar-se contra quem a utiliza com soberba e corre assim o risco de alienar a empatia com o público.

Aliás, houve um momento em que Costa podia ter perdido o pé quando, a propósito da insistência de Passos na herança governativa de Sócrates – mas visando manifestamente o fantasma incómodo da personagem – lhe sugeriu que seria mais fácil falar agora com o anterior primeiro-ministro. Em todo o caso, foi quase confrangedor ver como Passos, habitualmente tão seguro de si nos debates parlamentares, cometeu sucessivos erros de palmatória ao invocar repetidamente o fantasma de Sócrates para lavar as mãos de responsabilidades ao atual Governo.

Foi um confronto cénico de imagens e perfis de dois atores políticos, muito mais do que um debate de ideias e programas, segundo a bitola dos duelos televisivos. É duvidoso que os espetadores tenham ficado mais informados sobre a substância e a consistência daquilo que a coligação e o PS propõem para o futuro – até porque um dos intervenientes se limitou essencialmente a evocar o balanço de uma governação anterior, já julgada nas urnas, para justificar e legitimar a sua.

Ainda assim, foi instrutivo verificar como um produto de marketing, feito à medida para intimidar um eleitorado temeroso e dividido, pode perder uma batalha importante com um adversário da ‘Não há alternativa’ vigente. Só por incurável facciosismo não se reconhecerá quem efetivamente venceu.

Houve um tema que esteve escandalosamente ausente do debate: a Europa. Ora, a Europa condiciona todas as opções políticas e económicas nacionais, o que torna essa ausência ainda mais incompreensível. Mas como se isso não bastasse para ilustrar o paroquialismo dos critérios jornalísticos na seleção dos temas a debater, o futuro da Europa está hoje a ser posto em causa por uma convulsão sem precedentes.

Depois da crise grega – ainda em aberto e com desfecho porventura mais incerto do que nunca -, o êxodo dos refugiados vindos dos cenários de guerra do Médio Oriente colocou a Europa perante o risco de desintegração e um terrível dilema existencial. A imagem de um menino sírio morto nas praias da Turquia veio despertar as consciências de uma parte da opinião pública europeia sobre a insuportável indiferença e a xenofobia agressiva que grassam no continente.

Há hoje, em confronto, duas Europas praticamente inconciliáveis: aquela onde ainda reconhecemos um património comum de valores civilizacionais e uma outra, cada vez mais identificada com as fronteiras a Leste e saída das convulsões posteriores à queda do império soviético.

Polónia, República Checa, Eslováquia e, sobretudo, a Hungria, integradas à pressa na atual União, colocaram-se no outro lado da barricada, pondo em xeque esse património que cimenta a identidade europeia (sendo o caso do Governo húngaro, de tendência fascizante, o mais clamoroso de todos). Como poderá tudo isso ser arredado do debate político português?

P.S. – Por opção e convicção, não escrevo conforme as normas arbitrariamente impostas pelo chamado Acordo Ortográfico, uma frivolidade de burocratas da Língua que tem sido acriticamente seguida pela maioria dos meios de comunicação social e editoras nacionais. As alterações introduzidas nos meus textos são, por isso, da responsabilidade editorial do SOL, segundo as regras recentemente estabelecidas pela direção deste jornal.