Quem quer ser peter pan?

O homem vê as notícias sobre a morte de um indivíduo da sua idade. Referem-se a este como ‘um homem de 34 anos’.

lembra-se, sem saber porquê, de quando era miúdo e a televisão repunha uma série clássica, o fugitivo. gostava do programa e do protagonista, recorda-se de pesquisar o actor – david janssen, 35 anos – e achar que, sim senhor, tinha idade de homem, era-o e assim o aparentava (‘à mulher de césar não basta sê-lo’). o desvairado comboio mental volta às notícias e reflecte: quando a vítima tem até 29 anos, diz-se que faleceu um jovem; a partir dos 30, anuncia-se que morreu um homem.

este, o nosso, acabrunha-se em papéis desorganizados. dá consigo a pensar como chegou até aqui, à beira da idade do ‘fugitivo’, quando não é de todo isso o que o espelho reflecte. tem de parecê-lo, e não consegue. é um eterno adolescente atormentado com papeladas regulares, um perfeito inepto burocrático. contas, requerimentos, multas, seguros, prestações, avisos, prazos, reclamações, tanta árvore assassinada para lhe recordar, por vezes com veemência, que habita no mundo real, dos adultos, das responsabilidades e obrigações.

dá por si a precisar do pai, a desejar encontrar-se de novo no quarto onde cresceu, a questionar amigos da mesma geração que o olham, condescendência doce, como se viesse de outro planeta. como não sabes? como não fizeste? como não? e o adulto adiado amargura-se mais, desejando um anjo-da-guarda contabilista encartado e bom samaritano que o guiasse maioridade fora, pelos apeadeiros onde se trocam papéis por dinheiro ou informações. um alarme humano para prazos a expirar, cautelas e caldos de galinha. envergonha-se da sua aparente incapacidade genética para a hiper-realidade, aquela que escapa a tudo o que não seja o trabalho que o absorve e preenche ou a preocupação boa pelo bem-estar dos que ama. tenta encontrar humor no seu carácter estouvado mas muitas vezes o resto do mundo não ri. talvez, é provável, o vejam afinal como o homem de 34 anos que não quer ser.

e depois, volta e meia, dá por si a correr atrás do prejuízo, atarantado como um veado no meio do bosque, aflito com a luz dos faróis de um jeep que o encandeia, mas relativamente manso – qual masoquista – com a noção de que talvez seja o karma. e que, para compaginar fantasia e burocracia, será preciso de quando em vez andar de um lado para o outro com o coração aos soluços, tal qual a personagem d’o fugitivo.

ii – paulo futre

é o novo josé hermano saraiva

era um tempo diferente. não havia internet, telemóveis nem reality shows. os miúdos ainda brincavam na rua e a escolha televisiva de canais, pfff, quase residual. o meu ídolo jogava, por isso, pouco. ou melhor, o escriba assistia a pouco tempo dele, mas cada segundo era imperdível e esperado com ansiedade. acompanhava os resumos do atlético de madrid no fim do telejornal com a mesma paixão de quem compra bilhete para o concerto da banda da sua vida. não me interessava o atlético nem a liga espanhola, só os dribles estonteantes daquele futebolista tão diferente dos outros todos que era tal qual como um arco perfeito desenhado numa pintura cubista, um vírus no sistema, uma estrela ascendente num céu de luzes imóveis. devo ainda ter no sótão da casa açoriana um par de cassetes vhs bafientas com resumos mal compilados das aventuras de paulo futre pelo flanco esquerdo, a rasgar o campo todo, ou serpenteando para um destino prosaicamente chamado baliza. que me perdoem os leitores que viram jogar eusébio, e aqueles que legitimamente discutem chalana, figo e cristiano ronaldo como pequenos deuses, qual deles primus inter pares, mas no que me toca jamais vi craque português tão apaixonante como futre.

com a noite do futrebol (tvi24), o antigo astro corria o risco de, para usar a expressão anglo-saxónica, ‘wear out his welcome’. após o renascimento mediático pelas razões conhecidas, anúncios, conferências, entrevistas, o diabo a 4, será que o público não acabaria por ficar cansado? quanto a mim, não. durante a hora e meia do programa pura e simplesmente desaparece-me o conceito de zapping. futre parece, como comunicador, tão estonteante como era nos anos de futebolista. metralha histórias hilariantes, agita-se como se o movimento do eixo terrestre dependesse dos seus gestos, fala tu-cá-tu-lá com estrelas da bola ou anónimos pelo telefone, comove-se, irrita-se, brinca, encosta o apresentador ao carinhoso papel de ‘mano sousa’, quase uma partenaire do ilusionista. e, aparentemente, futre não muda do directo para as intervenções gravadas, das entrevistas para o comentário, dos telefonemas para as rubricas; é genuíno, simples, puro.

consta que a noite do futrebol é vedeta nas audiências da renovada tvi24. não admira. futre é imprevisível, real – porque impossível de inventar se não existisse; e ainda por cima fala-se de bola sem teorias bacocas para encher chouriço. segundo o escritor espanhol javier marías, «o futebol é o regresso semanal à infância». graças então a paulo futre, volto lá duas vezes em cada oito dias. um luxo.

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