Nas coisas novas o amor

Limpo a carteira. Opto por fazê-lo embora outros se dediquem cada vez mais à mesmíssima tarefa. Está velha, estragada há demasiado tempo, e chega de adiar a decisão.

dela saem, como peixes mortos junto ao esgoto, todo o tipo de papelinhos. facturas que pouco ou nada servem a um trabalhador independente (nome pomposo para quem passa recibos verdes); comprovativos múltiplos via multibanco, um par de multas; cartões de pessoas importantes, de empresas com quem nos esquecemos de acertar um compromisso no timing ideal, outros que nos deveriam refrescar a memória mas não sabemos de quem são; recibos da renda; um poema manuscrito.

da peneira salvam-se os cartões em uso, os versos doutrem e pouco mais. a transladação é feita para uma carteira novinha, de pele, uma prenda com meses mas ainda a cheirar a nova. e, por instantes, organizando de forma meticulosa os habitantes indispensáveis da nova carteirinha, tenho a ilusão de ter enfim a vida em ordem, disciplinada por compartimentos adequados, impecavelmente caprichosos. penso em como o amor pode estar nas coisas novas, onde existe a possibilidade de um recomeço, sem erros nem atropelos nem falhas. é uma simples carteira, mas ao aninhá-la no bolso de trás tudo soa certo: tamanho, peso e utensílios. o resto e o demais, a antecessora idosa e os seus pertences há tanto inúteis, segue para incineração na lareira – espécie de cremação do passado. como se destas cinzas prosaicas pudesse alguma vez renascer uma fénix. fingidores há muitos, seu poeta.

ii – da importância dos nickelback

para a origem de uma nova profissão

os nickelback são uma banda rock fm canadiana de enorme êxito comercial… mas profundamente odiados por motivos insondáveis. sim, estão a anos-luz de serem tom petty and the heartbreakers mas, caramba, também são muitíssimo menos enervantes que uma lady gaga. o fenómeno faz lembrar um caso análogo em portugal, aquilo que sucedeu aos delfins, a páginas tantas e durante anos alvos favoritos de chacota avulsa. um estranho caso de rebanhada injusta contra alguém – onde não se percebe quem apareceu primeiro, o ovo ou a galinha, e já agora porquê.

recentemente, o grupo musical decidiu ripostar – e fê-lo com elegância, algo verdadeiramente difícil. certamente foram bastas vezes aconselhados a assobiar para o lado e seguir em frente, em vez de se arriscarem a cair no papel do puto abusado na escola que, a certa altura, acaba involuntariamente por estimular a continuação das chatices. lembro-me de um coleguinha que reagia ao pontapé a quem, ao cruzar-se com ele nos corredores, lhe aplicava uns irritantes carolos. provavelmente, se não fizesse caso algum do assunto – ah, o poder do desprezo – teria feito com que os cretinos se fartassem. mas que fizeram então os nickelback? começaram a responder nas redes sociais, com humor. no twitter, por exemplo, alguém postou que estava muito bem no trânsito quando uma música dos canadianos começou a tocar na rádio, e o fulano vomitou dentro do seu próprio automóvel. reply dos nickelback: ‘parabéns, temos a certeza de que terá sido o melhor dia da tua vida ;)’. mostra classe, e poder de encaixe.

aliás, o exemplo dos nickelback fez-me pensar na possibilidade de surgir um novo ofício: profissionais contratados pelas celebridades com o preciso intuito de responder em nome destas, e com sentido de humor (pela ironia, pelo sarcasmo, pela auto-depreciação), aos chamados ‘haters’ – gente que aparenta passar boa parte da vida a atazanar aqueles que nunca conseguirão ser. aqui ofereço desde já os meus préstimos a miguel ângelo, um tipo porreiro e autor de uma data de boas canções.

iii – o orgulho que nos falta

tive recentemente o prazer de ser entrevistado para uma televisão dedicada à comunidade luso-descendente em frança, sobretudo a localizada em paris – ainda a 2.ª cidade do mundo com mais portugueses. confessei o meu espanto à jornalista, uma vez que o seu target dificilmente conhecerá o que quer que seja do meu trabalho. claro que esqueci a internet, onde hoje tudo se pode partilhar.

terminado o trabalho, ficámos um pouco à conversa sobre o preconceito que por cá existe em relação aos emigrantes. muita gente acha uma parolada aquela coisa dos ranchos folclóricos e dos pimbas como animação nas festividades locais, parodiam o sotaque misturado de pronúncias, os carros vistosos e alugados com que alguns regressam à terra para impressionar os velhos conhecidos pelo verão.

a jovem jornalista deu-me outra perspectiva, bem mais interessante. falou da alegria que os luso-descendentes, mesmo os de 2.ª e 3.ª geração, sentem pela sua ligação aqui ao burgo. explicou-me como até os mais jovens, mais integrados e mais cool, não dispensam bandeiras, galos de barcelos e t-shirts rascas ‘i love portugal’, quando se trata de tocar a reunir na celebração da terra mãe. festejam com a ingenuidade, pureza, que se transmite de geração em geração. era assim que o avô fazia e, assim, está muito bem. não se importam nadinha que as manifestações de apreço, às vezes mesmo júbilo, os façam parecer saloios. no fundo, dão-nos uma grande lição: longe da terra, sentem o orgulho nela que falta aqui dentro (tanto).

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