A impossibilidade de estar feliz quando todos o são

É quarta-feira, dia 28 de Março, e o Hard Rock Café abarrota de jornalistas para a conferência de imprensa de apresentação do 5 para a Meia-Noite – cuja 6.ª temporada, com a mais longa duração até aqui, seis meses, terá lugar na RTP1. É uma atenção mediática como nunca tivemos. E não consigo estar feliz.

martirizo-me por isso, disfarço como posso, visto obviamente a pele de profissional e procuro responder a todas as perguntas de modo nem que seja ligeiramente diverso, original, mesmo quando as questões são as mesmíssimas. há naturalmente muitos sorrisos por aqui, abraços, calduços, entusiasmo sincero. e a minha penitência continua. auto-flagelação convenientemente pascal. sou assim, sempre fui e para mal dos meus pecados duvido que vá a tempo de mudar. nos momentos que deveriam ser de maior alegria penso em tudo o que pode correr mal. nas críticas de pacotilha, fáceis, que sou capaz de adivinhar antes sequer do tiro de partida: ah, agora na generalista… venderam-se; nunca mais foi a mesma coisa; no início é que era bom.

penso na pressão, desafio e responsabilidade de entreter as pessoas naquela que é provavelmente a altura mais difícil das suas vidas. reflicto no que os riscos da competição podem fazer às amizades. angustio-me pelo tempo que deixarei de ter para dar aos que amo. e a meio da noite saio da cama para escrever estas linhas. já posso dormir, consciente – apesar de tudo e finalmente – do privilégio de estar aqui.

ii – o respeitinho (ainda) é muito bonito

spoiler alert – ou espécie de. o escriba encontra-se furibundo. há probabilidade de aparição de palavrões nas frases seguintes. favor afastar as crianças e pessoas impressionáveis da leitura deste artigo.

estou farto dos truques desta finisterra cada vez mais finis e menos terra. o hábitozinho, o brando costume de passar recibos ironicamente verdes antes de ver a cor do dinheiro. cansado dos pulhas do calote, das empresas que declaram falência sem mais ai nem ui, dos que se esquecem convenientemente dos prazos prometidos para o cumprimento daquela que é apenas e simplesmente a sua obrigação. estou pelos cabelos com esta miséria de trabalhar antes, muuuito antes de receber, esta sacanice dos convites alegadamente lisonjeiros a troco de porra nenhuma, os pagamentos a 30, 60, 90, 120 dias. se tiveres sorte. fartinho dos freaks subsidiodependentes, de copo na mão entre as esquinas da moda, sempre a palrar sobre ‘projectos’ que, se porventura avançarem, ninguém vê. angustiado com a segurança social, que parece nem cruzar dados com as finanças, mas ambas já aparentemente de conluio no interesse em que justifiquemos – com prazos e multas e ameaças veladas – dados cujas minudências deveriam ser precisamente as empresas a dar conta. ‘ah, mas temos aqui o recibo que você passou’. mas não recebi esse valor. ‘não interessa, temos o comprovativo’. exactamente que parte de ‘não recebi’ é que você não entendeu? ‘não é problema meu’. então vá ver se a merda da empresa declarou esse dinheiro. não quero mais ser mexilhão. chega deste bando de mentecaptos que admiram muito a função pública por darem mau nome à mesma. basta com o raciocínio positivista, quadrado, o argumento calão de que ‘lei é lei’. e quem me sustenta se partir as mãozinhas num acidente e não puder mais escrever? ‘trabalhador independente’, dizem eles. como, se dependo da boa fé, da ética, da moral, da sobriedade, decência e vontade daqueles para quem for a correr, volta e meia, coração aos pulos, (tentar) esclarecer dúvidas? ivas e retenções e percentagens, e cuidado que a actividade não é essa mas outra, e promessas de que o dinheiro já vem, foi só ali dar uma volta entre as contas do devedor, render uns jurozitos, ‘tá a ver?, mas volta, é como os gatos, sabe sempre o caminho de regresso a casa. entretanto, continue a sua vidinha que quem não deve não teme. continue a dar o litro. coisas boas vêm para quem espera. pague portagens, parquímetros exorbitantes, combustíveis absurdos, sim, pague para trabalhar. chegue de vez em quando atrasado porque a autoridade mandou-o encostar numa operação stop a meio do dia simplesmente porque pode. de certeza que o patrão vai compreender. respeitinho pelo patrão. sem eles, a sua iniciativa, empreendedorismo, capacidade de gestão, o que seria de nós? murchava decerto o sol, emporcalhavam-se as praias, azedava o vinho. continue o seu caminho, cinto de austeridade bem apertado, que isto vai lá. há homens providenciais, melhores que nós, a resolver tudo. você é que tem sorte, trabalhador independente, que nome lindo, que conquista de abril, ah, quem me dera. independente de subsídios, seguros, 13.º mês. vá pela sombra, use o cartão minipreço, o fast, o galp, o do acp, o do lidl, os descontos para sócio do benfica, meta mais gasolina, dê uma escapadinha ao allgarve, jogue no euromilhões, pague as continhas cada vez mais altas, confie na justiça, e ouça os senhores comentadores que eles é que sabem, só não previram isto tudo, coitadinhos, porque têm empresas para gerir.

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