O fantasma da Luz

O dérbi do domingo [25 de Outubro] no Estádio da Luz era de importância capital para ambos os contendores. Mas sobretudo para Jorge Jesus e Luís Filipe Vieira. 

Jesus queria provar que o Benfica sem o «cérebro» – como ele diz – não é o mesmo Benfica. E Vieira propunha-se demonstrar que o Benfica não perdera nada ao trocar Jorge Jesus por Rui Vitória. Aliás, depois da vitória em Madrid contra o Atlético, Vieira embandeirou em arco e disse que o Benfica tinha finalmente um treinador que «compreendia a dimensão europeia» do clube (esquecendo-se de que, quando Jesus chegou à Luz, o clube estava em 23.º no ranking europeu e com ele passou para 5.º).

A estratégia era desvalorizar o trabalho feito por Jorge Jesus de águia ao peito, tentando passar a ideia de que o importante, num clube, é a «estrutura» e não o treinador. Assim, Jesus sem a estrutura benfiquista não seria nada – e, inversamente, a poderosa estrutura encarnada seria suficiente para continuar a garantir os êxitos do clube. 

Na boca dos comentadores afetos ao emblema da Luz, Jorge Jesus era um mero «ex-funcionário do Benfica», sem importância de maior. Um funcionário que poderia substituir-se por outro, sem que a máquina se ressentisse. 

Mas ao mesmo tempo que dizia isto, o Benfica fazia o contrário. Recusou-se a pagar o último ordenado ao treinador e pôs-lhe um processo exigindo 14 milhões de euros de indemnização. 14 milhões!

Isto tudo por ter trocado o Benfica pelo Sporting. 

Mas se o homem não tinha importância, se era um simples ex-funcionário perfeitamente substituível, como se percebe um pedido de indemnização tão elevado? Um pedido destes só se compreende estando em causa uma estrela de primeira grandeza e não uma qualquer peça da ‘estrutura’… 

Eu percebo que Luís Filipe Vieira tenha ficado agastado com a ida de Jesus para Alvalade. Quando planeava vê-lo longe de Portugal, a treinar no Qatar ou noutro qualquer país árabe, viu-o a atravessar para o outro lado da Segunda Circular. E isso custou-lhe. Mas de quem foi a culpa?

A ida de Jorge Jesus para o Sporting custou a Vieira e custou aos adeptos.

«Traição!», gritaram os benfiquistas. Talvez vingança, digo eu. Talvez Jesus tenha querido vingar-se da humilhação que sentiu quando Luís Filipe Vieira quis levá-lo pelo braço a Paris para assinar contrato com um clube do Médio Oriente – com a promessa vaga de um dia ir treinar o poderoso PSG.

Jesus tinha acabado de dar ao Benfica mais um título nacional e sentiu-se injustiçado. Ora, a oportunidade de treinar o Sporting surgiu-lhe como a hipótese de uma révanche. O treinador percebeu que tinha ali uma possibilidade de ouro de provar por A+B a Vieira o erro que cometera ao pô-lo delicadamente à porta da Luz. 

Ora bem, todos estes apaixonados ingredientes desaguavam no dérbi de domingo, fazendo dele um jogo único. Jesus e Vieira, depois de tanta conversa, podiam finalmente mostrar quem estava certo. Os exércitos de Jorge Jesus e Luís Filipe Vieira encontrar-se-iam em campo aberto e saber-se-ia quem tinha razão. 

Os adeptos entraram inevitavelmente nesta guerra – e ouvi alguns benfiquistas dizer que só começariam a aplaudir a equipa a partir dos 3-0. O adversário era tão débil que os dois primeiros golos nem mereceriam aplausos. E a verdade é que cumpriram a promessa. De facto, só depois de o resultado estar em 3-0 é que os benfiquistas aplaudiram freneticamente a equipa. Foi a partir dos 70 minutos. Com a única diferença de os golos terem entrado na baliza errada: não na do Sporting mas na do Benfica… 

Embora muita gente olhasse para esta partida como um tira-teimas, julgo que a partir de um só jogo não podem tirar-se conclusões. O problema é que este jogo e este resultado vão perdurar por muito tempo na memória de benfiquistas e sportinguistas. Por muitos anos. Jorge Jesus nunca se livrou do peso da derrota por 5-0 no Dragão. Muitos benfiquistas nunca lhe perdoaram a humilhação. Ora este resultado, em certo sentido, é mais penoso – pois foi no próprio Estádio da Luz e contra o rival de Lisboa.

E deve perceber-se que a guerra do Benfica, neste momento, não é contra o FC Porto mas contra o Sporting. E que do lado do Sporting se passa o mesmo. O Benfica não podia perder este dérbi. E o Sporting tem como prioridade obsessiva as vitórias contra o Benfica. Porquê? Porque os adeptos sabem que só serão alguma coisa a nível nacional depois de se superiorizarem ao Benfica em Lisboa. A partir do momento em que for o rei da capital, aí sim, o Sporting preocupar-se-á com o Porto e com o país. Também por isso este embate era importante.

O fantasma da Luz vai continuar a pairar sobre os benfiquistas. A cada derrota o fantasma regressa. Foi assim no princípio da época. Depois Rui Vitória ganhou 6-0 ao Belenenses e a seguir foi vencer a Madrid e os benfiquistas respiraram fundo: «Temos homem!». Acharam que Jorge Jesus estava morto e enterrado para eles. Mas o fantasma regressou. Moveram-lhe guerra, pediram-lhe 14 milhões de euros de indemnização, um por cada adepto. 

Só que os adeptos querem vitórias e não euros. E, no regresso ao Estádio da Luz, Jesus mostrou que ainda é o rei. Antes ganhava com a camisola do Benfica, hoje continua a ganhar com a camisola do Sporting. Mas o trunfo continua a ser ele. Não é Luís Filipe Vieira, não é a estrutura, não é Rui Vitória, não são os adeptos encarnados (o 12.º jogador), é Jorge Jesus. 

Um jogo não é tudo, repito. Mas a memória deste jogo vai demorar muito tempo a apagar.

jas@sol.pt