Apoiar é poucochinho

Uma excelente autarca contou-me há anos que as mulheres do seu partido ficavam chocadas quando ela dizia que gostava do exercício do poder; é suposto que, mais ainda do que os homens, as mulheres exibam ares de vítima martirizada quando assumem algum cargo, pelo menos no setor público.

A teoria do sacrifício pela Pátria foi nestes últimos anos levada ao paroxismo. A mensagem governativa consistiu, em resumo, nisto: é para vosso bem e muito contrariados que vos fazemos tanto mal, acreditem, cidadãos.

O refrão deste fado mil vezes repetido era o dos «compromissos internacionais»: a culpa é dos mercados, dos credores, da Europa. A bem dizer, nós não mandamos nada.

Só as crianças admitem que gostam de brincar ao mando; os adultos, em geral, fazem de conta que não gostam.

Não é um fingimento completo, porque o poder implica uma coisa com a qual, de facto, muito poucos sabem lidar: responsabilidade.

Criticar o poder faz maravilhas aos nossos pequenos e amarfanhados egos. Mas tomar consciência das suas possibilidades e utilizá-lo a favor do bem comum é muito mais complicado, e causa sempre anti-corpos – não apenas porque é impossível (e indesejável) agradar a gregos e a troianos, mas sobretudo porque o poder, por mais pequeno que seja, cria invejas.

Sempre houve e haverá gente que nunca fez nada por ninguém e que todavia crê sinceramente que faria muito mais e muito melhor do que todos os outros – se tivesse essa oportunidade pela qual tudo o que fez foi procurar minar a concorrência.

Se o acordo de governação entre os partidos de esquerda se resumir ao apoio parlamentar do Bloco de Esquerda, do Partido Comunista Português e de Os Verdes a um Governo do Partido Socialista, é evidente que não terá pernas para andar.

Escrevo no dia 3, com esperança – reduzida, é certo – de que até dia 11 seja possível que estes quatro partidos fechem um efetivo e sólido programa de Governo.

A esquerda dita radical tem de demonstrar agora que está disposta a ser parte da solução, e deixar a linha do puro protesto. Governar suja, pois é: mas insistir em não governar é uma demissão que a população já não tem ânimo para aguentar.

Pela primeira vez em quase 40 anos, o chamado arco da governação, que tantos danos tem causado à própria imagem da política com os seus joguinhos de influências e de proteção inter-pares, pode transformar-se – e, com isso, transformar o próprio modo de fazer política, que está anquilosado.

Os brados histéricos sobre o regresso do PREC não têm razão de ser: o mundo mudou, e Portugal, por estranho que pareça, também.

Leiam Portugal, Tempo de Paixão, um livro de Leonor Xavier com testemunhos de figuras de todos os quadrantes políticos sobre o Verão Quente de 1975, e percebam a que ponto o país é hoje outro.

A maioria de esquerda eleita através do voto tem de se refletir na composição do Governo; a não ser assim, daqui a meses, à primeira discordância, o apoio parlamentar será posto em causa, o PS ver-se-á refém dos seus parceiros e – o que é muito mais grave – Portugal ficará ingovernável.

Vejam a série televisiva Borgen e aprendam com a luminosa Birgitte como é possível pôr o acessório entre parêntesis e encontrar caminhos de união para o essencial. É ficção, dir-me-ão: mas uma ficção que reflete a realidade do reino da Dinamarca, uma das democracias mais avançadas do mundo.

Acabou o tempo confortável da reivindicação: agora a esquerda tem de mostrar que é capaz de exercer o poder e de responder responsavelmente perante a população. É a hora, sim.     

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