Compôs a sua vida académica, romanesca e literária como uma fabulosa biblioteca intelectual, uma espiral soberba de erudição, pensamento, imaginação e humor. Com a morte de Umberto Eco (sofria de cancro há vários anos), desaparece um dos últimos símbolos de um certo tipo de intelectual europeu: bibliómano e bibliófilo, constrangedoramente culto, eclético, humanista, empenhado, bon vivant. Ou, como resumiu Bernard Pivot: «Dávamos-lhe uma palavra e ela fazia surgir de imediato no seu espírito duas memórias, três histórias e quatro reflexões. (…) Eco: o nome mais curto para a obra abundante de um semiólogo, romancista, historiador, filósofo, humorista e jornalista.»
Aos 48 anos, tornou-se célebre com a publicação do romance de estreia, O Nome da Rosa (mais de 14 milhões de exemplares vendidos), sobre a época medieval, o período e tema que mais o fascinaram (a sua tese de filosofia abordou a estética de São Tomás de Aquino). Eco sempre se declarou empenhado num entendimento superior dos opostos: a verdade e a mentira, o belo e o feio, a luz e as trevas. Interessava-lhe iluminar o passado sem esquecer a presença do futuro (que muitas vezes intuiu e anteviu), sobretudo perceber a retórica dos discursos de cada tempo histórico. Apesar de se orgulhar das dificuldades e desafios colocados pelos seus livros ao leitor comum, entendeu sempre o debate como essência da cultura.
Professor universitário brilhante, autor de ensaios de semiótica, estética, linguística e filosofia, também colaborou com a televisão (na conceção de programas de cultura) e escreveu para jornais.
Foi o oposto do intelectual pedante, que tenta impor ao mundo a sua visão. Uniu com singularidade a sua vida académica e a vida pública de autor de best-sellers, mas foi também um fidelíssimo e nostálgico defensor dos privilégios da alta cultura (resultante de altos esforços e desafios).
Daí ter dito, por exemplo, sobre as redes sociais e a internet: «É uma revolução antropológica que, até agora, não teve senão efeitos negativos. O interesse da cultura é permitir o nosso encontro com interlocutores críticos, que não hesitam em dizer-nos que estamos enganados. Ora, na internet, expõem-se as loucuras pessoais, agride-se, mas jamais se aceita a crítica» (Ouest France); «O drama da internet é que ela promoveu o idiota da aldeia a detentor da verdade. (…) Normalmente, os imbecis eram imediatamente calados, mas agora têm o mesmo direito à palavra do que um Prémio Nobel» (Universidade de Turim, 2015).
Pioneiro da semiótica, pensou-a como campo privilegiado de intersecção entre a cultura erudita e a cultura pop. Refletiu sobre esta relação desde os anos 60, e um ensaio intitulado Apocalípticos e Integrados, até ao final, ao sexto e último romance, Número Zero, thriller irónico passado numa sala de redação imaginária, publicado em 2015. Pelo caminho, nos ensaios coligidos em Obra Aberta (1962) ou na reflexão Lector in Fabula (1979), defendeu o objeto artístico como portador de mensagem múltipla e ambígua, aberto a um leque amplo de interpretações.
No caso da interpretação literária, ao deslocar o seu foco da conexão entre a identidade do autor e o texto para a produção de sentido por parte do leitor, abriu a este último a possibilidade de participação ativa e criativa nos textos narrativos.
Num livro póstumo, intitulado Pape Sante Aleppe e com lançamento previsto para maio próximo, reuniu uma série de crónicas escritas para a revista L’Espresso, genericamente sobre a crise da ideologia e da memória e a obsessão com a autopromoção.
No início de 2015, insurgira-se contra a concentração editorial italiana, maioritariamente nas mãos da Mondadori (propriedade da família de Silvio Berlusconi), batera com a porta à sua editora de sempre, a Bompiani, e juntara-se a uma pequena chancela independente, intitulada O Navio de Teseu. Intérprete múltiplo e ativo dos tempos líquidos em que lhe coube viver, Umberto Eco deixa um legado fundamental, cuja perenidade estaria assegurada até mesmo só enquanto eco de uma frase sua: «Quem não lê, aos 70 anos terá vivido só uma vida: a sua. Os que leem terão vivido cinco mil anos. Ler é uma imortalidade de trás para a frente».