Artur Anselmo: ‘Os académicos nunca perdem as estribeiras’

Artur Anselmo revela-se preocupado com a média de idade dos académicos, que ronda os 70 anos. Mas também elogia os mais velhos que mantêm a assiduidade, como Adriano Moreira, que aos 91 anos continua a comparecer todos os dias, por volta das 9h30 da manhã. Aluno de Vitorino Nemésio na Faculdade de Letras de Lisboa,…

No prefácio do seu livro diz que teve a felicidade de nascer numa família onde os velhos ensinavam muita coisa. Como era o ambiente em sua casa?

A minha mãe ficou viúva muito nova, aos 29 anos. O meu pai era comandante da polícia em Benguela, e quando ele morreu a minha mãe regressou à terra natal dela, no Minho. Estudei num colégio de freiras franciscanas em Valença do Minho. Davam uma educação fantástica, enciclopédica. A nossa instrução primária correspondia talvez a uma licenciatura de hoje. Éramos formados com muita severidade – não sejamos românticos. As novas gerações não fazem ideia de como era difícil a vida no século XX.

Quão difícil?

Nasci em 40 e entrei para o colégio de Valença em 46, tinha acabado a guerra. A minha mãe trabalhava na chamada Intendência Geral dos Abastecimentos, que fazia as senhas de racionamento. E a diretora do colégio, uma freira franciscana, escrevia cartas lancinantes: ‘Veja se me arranja um saco de arroz’. No colégio não havia quase que comer, então as freiras aqueciam água, punham lá um bocado de carne de porco, toucinho ou assim, e depois atiravam massa lá para dentro. Chamava-se caldo de unto. E apareciam bichinhos a navegar na sopa.

Quem vivia em sua casa?

A minha mãe e os meus dois irmãos. Somos três rapazes. Dois seguiram vida militar, depois o meu irmão mais novo apanhou uns tiros na Guerra de África. Ficou inutilizado mas conseguiu sobreviver e formou-se em Direito. Foi um advogado muito ilustre no Porto, hoje está aposentado e tem quinta em Monção.

A sua família é do Norte, portanto.

A da minha mãe. O meu pai era alentejano, de Estremoz. Fiz muitas visitas de estudo e numa delas fomos a Estremoz. Fui ver se havia algo que me recordasse o meu pai. Não havia praticamente nada. Mas havia uma feira com árvores de fruta, apaixonei-me por seis marmeleiros e plantei-os na minha quinta em Azeitão. São a recordação do meu pai.

Conheceu muito mal o seu pai.

Tinha três anos quando ele morreu. A minha mãe foi sempre muito doente e acabou por morrer tuberculosa aos 50 anos.

Depois da escola de freiras onde estudou?

Fiz o liceu em Viana, fui para o Porto e depois vim para Lisboa. Fiz a licenciatura com o dr. Vitorino Nemésio, na Faculdade de Letras. Nesse tempo para se seguir carreira universitária era preciso ter 16 de média, que era uma nota altíssima.

Como eram as aulas de Nemésio?

O Nemésio não se sentava na cadeira, andava no meio de nós, às voltas. As aulas dele eram bustrofédonas, como os latinos diziam – bustrofedon era aquele sulco que o arado fazia na terra e que dava aquelas curvas. Ele andava no meio de nós, sempre associando coisas com coisas. E eu tinha colegas que me diziam ‘Epá, não percebo nada’.

Perdiam-se.

Eu já apanhei hábitos lamentáveis, como o aluno sair da sala sem dizer nada. Naquele tempo não era possível, mas havia quem o apanhasse distraído e fugia.

Depois de concluir a universidade o que faz?

Quando acabo a licenciatura não há mestrados em Portugal e vou para o Brasil. Aproveitei o facto de lecionar na Faculdade de Letras de Minas Gerais para fazer mestrado no Botafogo. Aí minha vida foi muito difícil.

Porquê?

Metia-me num autocarro à noite na quinta-feira, saía às sete da manhã no Rio de Janeiro, assistia às aulas de sexta-feira, no final de sexta-feira metia-me noutro autocarro para regressar a Belo Horizonte.

Não foi para o Brasil ter uma vida fácil.

Em Belo Horizonte tinha muitas aulas, mas dava com gosto. No Brasil conheci grandes mestres divididos por uma fronteira: os que gostavam sinceramente de Portugal e os que tinham reservas em relação a Portugal – para não dizer que odiavam. Aproveitei o máximo que podia. Via anunciado na faculdade ‘Américo Costa Ramalho vai dar aulas de Latim do Renascimento’ e inscrevia-me logo. E nunca faltava.

Por que deu então o título Ler É Maçada, Estudar é Nada [citação de um poema de Fernando Pessoa] a um livro seu?

Mas na contracapa desse livro digo que aprecio muito o estudar. Tenho dito várias vezes: dei 400 aulas sobre os Lusíadas e preparei 400 aulas dos Lusíadas. Não conseguia dar uma aula sem a preparar meticulosamente. E hoje, quando se me depara uma situação nova, estudo-a. Vejo as faces dos problemas e tento encontrar uma saída poligonal. Esta tendência que algumas pessoas da minha geração têm para querer estar sempre com as modas… Não consigo. Sou demasiado conservador, se quiser. Cumpro os meus deveres, tenho uma vida que acho que é exemplar, não devo nada a ninguém. Deito-me satisfeito todas as noites – às dez horas já estou a dormir. Sei lidar com o dinheiro mas cuspo no dinheiro, tenho um desprezo enorme por ele. Sou um dos últimos intelectuais celebrados pelo Julien Banda. E os intelectuais sabem que me têm sempre do seu lado. Sou mais irmão de um escritor do que dos meus próprios irmãos.

Depois do Brasil passou pela Sorbonne.

Alta Cultura foi dividida em Cultura Portuguesa e Cultura Científica e criou-se o INIC – Instituto Nacional de Investigação científica. Optei pela investigação e fui para Paris. Estudávamos muito, tínhamos amor ao estudo e é esse amor ao estudo que depois dá o amor aos livros de estudo. Na minha tese de doutoramento na Sorbonne trabalhei só sobre incunábulos (livros impressos até ao dia 31 de dezembro de 1500). E a biblioteca da Academia é muito rica em incunábulos. O mais antigo é de 1478, francês ou alemão. A tipografia em Portugal só começa em 1487 – a tipografia hebraica, porque o primeiro livro cristão é de 1489, o Tratado de Confissom.

Começou por falar da dureza da vida na sua infância. Mas sei que também reconhece qualidades a Salazar.

Quando o Estado Novo começou a dar os primeiros passos, o país estava numa situação muito difícil. A dívida era uma coisa horrível, e não se pense que era só da República, vinha do século XIX. Mas vou-lhe contar uma história que me contou o dr. António Luís Gomes, que foi diretor-geral da Fazenda Pública. Como sabe, Salazar é primeiro-ministro dias depois de ter morrido D. Manuel II. O Rei tinha coisas fabulosas que estão hoje em Vila Viçosa, mas havia enormes dívidas aos livreiros. D. Amélia, a viúva, fica em pânico e diz: ‘Se os livros não estão pagos, devolvem-se’. O governo é informado dessas dívidas e o António Luís Gomes pede instruções a Salazar. Depois de pensar, Salazar chamou-o e disse: ‘Diga à família que esteja descansada, que vão seguir ordens para o nossos banqueiros em Londres saldarem essas dívidas’. Fizeram-se contas com os livreiros e a seguir vem aquela fórmula jurídica admirável da Fundação da Casa de Bragança. Estas coisas não aconteciam por acaso. Se calhar esse dinheiro usado nessa altura para pagar fazia falta a Portugal, mas havia já expectativas de que podíamos pagá-lo.

Houve consolidação das contas à custa das pessoas?

Hoje temos dificuldade em entender tanto sacrifício, mas ao mesmo tempo percebemos que se há dívida, tem de se pagar. E em 70 estava tudo pago. A ponte sobre o Tejo foi paga a pronto, veja bem! Quando o dr. Salazar disse aos americanos que ia pagar a pronto, eles nem queriam acreditar.

Sabia que entre alguns alunos tinha fama de fascista?

Carrego bem com isso, assumo a minha maneira de ser. Não me preocupa nada.

E como vê o 25 de Abril?

Outro dia falava-se em cofres cheios. Cofres cheios foi o que se encontrou no 25 de Abril, não é? Uma situação extraordinária, com um crescimento de 9%. Nem a China! O 25 de Abril teve esse ganho extraordinário que foi a liberdade, a possibilidade de conviver, de haver ideias diferentes. Mas isso não nos compensa do traumatismo horroroso de ver o país esventrado, de sair de África daquela maneira. Foi um traumatismo maior do que o ultimato inglês. Temos de morrer todos os que vivemos isso para se escrever a História desse período. Quer dizer, já temos historiadores isentos nas novas gerações. O Rui Ramos é um modelo, e o próprio Fernando Rosas, meu amigo e colega da faculdade, não embarca em futebóis, como se costuma dizer.

Deu a última aula há cinco anos. Tem saudades?

As comunicações aqui na Academia não são muito diferentes. Se me pergunta se alguma vez me senti mal na vida, nunca. Em todos os lugares que tenho ocupado sinto-me feliz, útil. Nunca tive uma depressão. Lembro-me de ser estudante, não ter dinheiro, mas nunca me ia abaixo. A mentalidade nesses anos era sobreviver.

Resistir?

Lembro-me de viver num quarto na avenida de Roma e de ter de entregar a crítica literária no Bairro Alto. Não tinha dinheiro para o autocarro e muito menos para o táxi. Ia a pé. Ia por Arroios, até chegar à Baixa, entregava o artigo e depois vinha a pé outra vez. Sinto-me bem com a vida. Gosto de Portugal, gostei de viver no Brasil, gostei de viver em França, gostei de viver na Alemanha, adorava Berlim Leste.

Como era a sua vida lá?

Vivia em Berlim Ocidental, tomava o metropolitano e saía em Friederichstrasse, a estação que unia o Leste ao Ocidente. Levava o meu caderninho de apontamentos e sabia que tinha de esperar pelo menos meia hora, porque tinham de chamar o latinista, para ver se as notas que tinha tomado no dia anterior na Deutsche Bibliothek (DB) não eram espionagem. Depois ia para a DB, adorava trabalhar lá. A máquina de escrever mais nova devia ser de 1920, os elevadores eram do século XIX.

Em que ano foi isso?

Isto passa-se em 78. Cada vez que passava tinha de trocar 25 marcos. Entregava os marcos ocidentais e recebia os orientais. A diferença era enorme porque o marco oriental flutuava na água, era uma moeda pequenina, e o ocidental era pesadão. E gastar 25 marcos por dia? Era difícil.

Não havia nada para comprar?

Não havia nada. Às vezes pensava ‘vou levar um compasso para a minha filha’ ou um estojo. Outra vez já não sabia o que havia de fazer ao dinheiro e comprei uma garrafa de uma bebida cubana. Quando cheguei ao ocidente vi que eram mais baratas lá. Se não conseguíssemos gastar o dinheiro havia uns vidrões enormes, transparentes, ‘Helft Vietnam’. Tínhamos de deixar lá as notas todas para ajudar o Vietname.

Não se podia levar dinheiro?

Ai de quem fosse apanhado, podia ter problemas sérios. Mas eu gostava da sociedade de Berlim Leste. Tinha boas amizades.

Como lhe pareciam as pessoas?

Conformadas. A Stasi, que era a polícia política, tinha muitos informadores nos prédios, nunca se sabia bem se se podia falar à vontade. E outra coisa que me impressionava era haver muitos edifícios desocupados.

A vida era cinzenta como imaginamos?

Os carros eram todos iguais, toda a gente tinha a mesma marca. Os prédios novos eram todos iguais. Mas as obras de arte e os monumentos estavam muito bem conservados. A assistência médica era boa, funcionava. Agora a burocracia era muita e havia um ódio ao Ocidente. Alguns colegas de Berlim leste odiavam a América e achavam que os berlinenses do ocidente eram americanizados. Para eles o ocidente era corrupção, prostituição e Coca-Cola.

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