Peste Negra

Um vírus está a disseminar-se com a resiliência de um tsunami. O chamado ‘humor negro’ é o equivalente moderno às maminhas na TV dos anos 80.

nesse tempo, bastava uma referência ao tema ou um decote mais pronunciado. agora, basta mandar uma bojarda e já está. o público não ri, para ser rigoroso, antes tem um ataque de excitação e nervoso miudinho, como quem pensa: ‘uau, não acredito que ouvi isto’. antes, ainda fresquinhos da ditadura, bastava que a audiência escutasse uma insinuação de mamas e estava o caldinho feito.

penso que tudo começou no lado bom da medalha, quando – em privado – os portugueses mostravam-se mestres em enfrentar a tragédia, com um humor acutilante, impossível de praticar em público, a servir de mecanismo de defesa (e esse era precisamente o seu único e desejado propósito – vejam-se os exemplos: morte de senna, entre-os-rios, 11 de setembro).

todavia, de repente, e decerto devido à profusão extrema de novos meios para comunicar, surgiram os arautos do ‘humor negro’ – infelizmente, com ênfase única e exclusivamente no negro. presumo que se suponham muito corajosos por falarem de pedofilia, deficiências, mortes trágicas ou por insultarem figuras públicas. há até quem se gabe de ser alvo de processos judiciais, como se isso não acontecesse antes e amiúde. seria uma pena se fizessem escola entre os jovens candidatos a humoristas. e um drama, se acabassem como influência decisiva no género, ao invés de obras como no cure for cancer, de denis leary.

formar-se-ia uma geração de hooligans. ainda por cima fajutos. é que qualquer um destes, se colocado perante uma grande audiência na noite, por exemplo, da tragédia recente na madeira… perderia a presumida bravura e, com ela, o pio. restaria um silêncio constrangedor. provável e ironicamente bem engraçado.

ii – 5 minutos,

para o bem e para o mal

admiro quem escolhe ser crítico profissional em portugal. é difícil ser isento e rigoroso num país tão pequeno em dimensão mas tão vasto em capelinhas e interesses. o crítico, idealmente, contribui com a sua leitura para estruturar a opinião do leitor – permite descobrir subtextos, detectar falhas; se for construtivo, pode até contribuir para a melhoria do objecto alvo da sua análise.

nomes como fernando sobral, miguel gaspar, nuno azinheira, joão gobern ou eduardo cintra torres souberam fazer-se respeitar. e noto, como declaração pessoal de interesses, que os dois últimos nunca mostraram ser – para utilizar um eufemismo – particulares apreciadores do meu trabalho. gente como emídio rangel ou josé eduardo moniz, brilhantes profissionais de televisão, têm igualmente de ser levados a sério quando decidem reflectir criticamente sobre o ofício. e esqueço decerto, do expresso ao público e etc, outros nomes com uma abordagem nobre à sua profissão. aqui, desde já, me penitenciando.

como profissional habituado a ter o seu trabalho exposto do outro lado da câmara aprendi, felizmente e desde cedo, a manter uma relação saudável com a crítica. tive um mestre que me ensinou uma grande lição logo aos 23 anos, quando estava eufórico com uma crítica encomiástica de mário castrim ao primeiro projecto televisivo em que participei como autor. disse-me para tirar 5 minutos dedicados a congratulações e voltar de imediato ao trabalho – cedo virá uma crítica de teor oposto, e nessa altura é preciso dedicar-lhe o mesmíssimo tempo. e assim foi. sabem muito bem, de quando em vez, os 5 minutos de palmadinhas nas costas, mas o que domina as restantes quase 24 horas do dia deve ser, sempre, o nosso objectivo, prioridade, ofício.

mais recentemente, outra lição curiosa – por parte de um escritor português de enorme sucesso, contada na forma de anedota: estava um homem a pescar caranguejos, colocando-os num balde atrás de si, sem lhes retirar no entanto as patinhas. ‘então?’ – espanta-se um amigo que chega – ‘eles assim vão fugir, pá’. responde o pescador de ocasião: ‘ah, não te preocupes… são caranguejos portugueses: quando um chega lá acima, os outros puxam-no logo para baixo’.

felizmente, e mesmo em relação a este outro tipo de ‘críticas’, lá está: a vida é curta, mas 5 minutos são apenas 5 minutos.

lfborgez@gmail.com