Lisboa: O que é que Xabregas tem?

Em Xabregas há um café que todos os dias fecha às 10h15 em ponto. Depois volta a abrir às 12h45 para fechar de vez logo às 14h15. É o suficiente para o sr. Sequeira servir a bica aos seus clientes, habituais de certeza, os poucos que sobram das “dezenas e dezenas” que noutros tempos, naqueles…

Lisboa: O que é que Xabregas tem?

 “Muitos vinham a pé até, a desfazer o almoço, ali da Sociedade Nacional de Sabões”, uma enorme fábrica a poucos minutos desta porta da Calçada do Grilo, da qual hoje sobram apenas muros e um portão para um descampado. É o suficiente para podermos dizer que em Xabregas ainda se bebe aquela bica que é a verdadeira porque custa 50 cêntimos, a lembrar-nos que ainda somos do tempo em que ela custou 50 escudos. “Aqui ainda não há turistas”, comenta Pedro Duarte ao pequeno-almoço, neste bairro onde ainda se servem torradas naquele pão de forma cortado a olho e bem grosso. Mas isto no café da rua do lado, que o café do Sequeira não está para essas coisas.

Pedro, que tem 29 anos e trabalha como produtor de cinema, será dos melhores anfitriões para uma visita guiada por esta zona oriental de Lisboa presa entre aquilo que já foi e o que ainda não é mas já se percebe que vai ser. E haverá poucos pontos de partida melhores do que a sua casa, na Ilha do Grilo, onde guarda um mapa de Lisboa antiga, 1928, altura em que a Amadora ainda aparecia como Porcalhota e que aquilo tudo a que hoje chamamos Beato aparecia muito bem dividido entre Beato, Grilo e Xabregas — onde, a propósito, havia até uma praia, a praia de Xabregas. “Era mesmo uma praia fluvial, o meu avô ia lá à praia, o meu pai ia lá pescar”, conta enquanto procura no computador uma fotografia a preto e branco do que era, de facto, uma bela praia. Talvez por isso os mais velhos nunca se tenham esquecido e ainda digam “ali na praia de Xabregas” quando se referem a uma zona cheia de guindastes em frente a um Lidl.

Foi nesta casa que se instalaram os seus bisavós quando, no início do século passado, vieram de Mafra para Lisboa. Foi nesta rua onde conversámos, à porta de casa porque está um bom dia de sol, que o seu avô brincou até aos 12 anos ter entrado como aprendiz de serralheiro na serralharia que havia umas portas à frente, para aos 16 descer a rua mais um pedaço para chegar à Sociedade Nacional de Sabões, onde trabalharia a vida inteira e onde chegou a trabalhar também o seu pai. E foi nesta rua que Pedro decidiu viver depois de há uns anos ter saído de casa dos pais, na Linha de Sintra, onde cresceu. “Tenho uma avó que vive no centro, na Baixa, e eu sempre tinha imaginado que quando fosse adulto ia viver para a Baixa — provavelmente, se não fosse esta crise, eu estaria a viver na Baixa, eu e muita gente, na Baixa e no centro. Mas houve a crise, muita gente teve de emigrar, e eu estou na Ilha do Grilo. Houve um dia em que pensei, ‘tenho ali aquela casa, porque é que não vou viver para lá?’. Gastei todo o dinheiro que poupei durante anos de trabalho a recuperar aqui a casa. Entretanto abr aqui uma empresa [a produtora que tem com uma sócia, chamada Primeira Idade], a sede oficial é aqui, nessa porta onde foi o copo-de-água do casamento dos meus avós”, diz, sorrindo. Esta onde estamos é a da sua casa. “Mas nada disto foi óbvio: se eu não tivesse esta casa dos meus bisavós, provavelmente não estaria aqui.”

Ou talvez estivesse mesmo, porque a verdade é que é para este lado que a cidade começa a crescer, muito graças aos artistas que procuram na zona oriental o espaço e os preços que já não se encontram noutras partes de Lisboa. “Eu lembro-
-me de dizer às pessoas da nossa idade que ia a Xabregas ver os meus avós e de ninguém saber o que era. Pensavam que era uma terra qualquer no Norte. E hoje as pessoas sabem, pelo menos sabem onde é. Acho que ajudou muito o facto de terem aparecido o Lux e a Fábrica do Braço de Prata, as pessoas começaram a olhar mais para este lado.”

Conventos, fábricas e prédios dos anos 80

Foi numa volta de carro por aqui que Dilen Magan, um lisboeta de Campolide de origens indianas, se perdeu um dia e foi dar a um palacete meio devoluto onde haveria de abrir, com Eurica, com quem tem uma filha, o EKA Palace, um centro cultural para promover todas as formas de arte e dar espaço e apoio a artistas. “É uma zona muito bonita. Tens palácios do século XVII e conventos, tens edifícios industriais e tens prédios dos anos 80, tens um centro comercial decadente, tens de tudo, e foi isso que me agradou.”

Daí que a primeira coisa que Dilen fez quando voltou para Portugal, depois de dez anos a viver em Londres, tenha sido mudar-se para esta zona da cidade, onde vive com a família, muito perto do EKA. “Acho que a próxima zona cultural óbvia de Lisboa é esta. Estamos perto e, mesmo assim, há pouca gente a morar aqui, o que quer dizer que tens espaço e que podes fazer barulho à vontade.” No EKA há espaço para todo o tipo de atividades, não estivéssemos num antigo palacete de Xabregas, e uma delas são as festas de eletrónica com afters que se prolongam ad aeternum, que é como quem diz enquanto houver gente, o que quer dizer que pode acontecer que uma festa que começa na sexta à noite termine só no domingo à hora de almoço. “Em todas as grandes cidades europeias tens os grandes museus no centro, mas depois as zonas em que estão os artistas são sempre nos arredores. É o que está a acontecer em Lisboa. Existe uma zona mais alternativa na Graça e nos Anjos, só que a Graça e os Anjos têm o defeito de ter muita gente a viver. Nesta zona ainda há muitas casas por alugar, há muitas coisas por fazer, o que faz dela uma zona mais aberta a receber este tipo de projetos.”

Desde que se instalaram neste pequeno palácio de Xabregas, em setembro de 2014, que têm vindo a recuperar aos poucos, já muita coisa mudou e uma delas tem sido o preconceito dos lisboetas em relação à zona oriental, desde que a partir da década de 70 começaram a desaparecer as fábricas — e as pessoas. “O nosso público até há dois meses eram estrangeiros, mas desde o Natal que os portugueses começaram a vir aqui, a querer passar cá a noite inteira, o que pode explicar-se por algumas festas que fizemos. A do Desterro trouxe 600 pessoas. Há todo um público mais underground que começa a vir mais para este lado. Uma coisa engraçada é que a distância do Cais do Sodré para Alcântara e para aqui é mais ou menos a mesma e as pessoas acham que Alcântara é perto e que Xabregas é longe.”

Talvez por Xabregas não parecer Lisboa ou, pelo menos, não parecer cidade. Xabregas lembra muito o campo dos tempos em que o sr. Sequeira do café, que por esta altura já fechou, ia a pé até ao Areeiro “sempre por quintas, com a maior das facilidades, por quintas e palacetes”.

Em Xabregas não há turistas, dizia Pedro, pelo menos fora das festas do EKA, mas há tuk-tuk. Que o diga o artista Tomás Colaço, que com Sofia Aguiar se lançou na aventura de alugar um antigo armazém da Matutano (com uma garagem feita para entrarem camiões TIR, imagine-se o tamanho) e já recebeu propostas para alugar a entrada do espaço a empresas destes transportes de turistas, que também aqui encontraram o espaço de que precisavam. Com tanto espaço, o Grilo – assim chamaram ao ateliê em que estão há menos de um ano, assim também ao cachorro irrequieto que costumam ter com eles por ali – não podia ser só um ateliê. Aproveitam-no para apoiar outros artistas com projetos de residências, uma vontade antiga que nunca tinham concretizado, e cedem também o espaço para jantares e festas, quase sempre de amigos, é uma questão de pedir. Ao contrário de Dilen, vieram aqui parar mais ou menos por acaso, são daqueles que, como nós, estão em Xabregas e dizem que vão a Lisboa, mas um acaso que não podia fazer mais sentido. Interessa-lhes explorar a ligação à comunidade e esta vida que se tem aqui quase como se se estivesse no campo — que também Pedro reconhece, apesar de dizer que vai à Baixa, não a Lisboa.

“Embora não seja bem verdade, não sinto que estejamos bem em Lisboa. Para mim, é assim romântico, dá espaço para imaginar, não há aquela coisa da cidade em que já sabes como é que é tudo: tens as casas, as ruas, os transportes, as lojas, está tudo organizado. Aqui não, está tudo muito desorganizado e isso permite-te recuar até outro tempo, até outras maneiras de viver. Não é por acaso que as pessoas dizem que sentem que estão no campo quando vêm até aqui. E estamos a dez minutos do Terreiro do Paço de transportes”, diz, para depois comentar que gostava de saber quantas pessoas chegaram a viver nesta parte da cidade agora quase deserta. “Pelo que me contam eram dezenas de crianças a brincar só na minha rua. Hoje há aqui, vamos dizer, dez famílias, e apenas dois adolescentes numa delas. Nessa época, em cada uma destas portinhas vivia uma família com oito crianças. Na minha casa, onde hoje vivo eu, viviam três famílias quando os meus bisavós chegaram.” egundo o recenseamento de 1890, citado pela historiadora Magda Pinheiro no seu livro “Biografia de Lisboa” (Esfera dos Livros), havia em Lisboa mais de 52 mil trabalhadores no setor industrial — o que é bem mais do que parece numa altura em que a cidade tinha apenas 350 mil habitantes. Os operários representavam então um terço do total dos habitantes com uma profissão. “A zona de Xabregas destacava-se como a mais industrial, sobretudo devido ao elevado número de trabalhadores da indústria tabaqueira.”

“Dava jeito era uma mercearia”

Quando há ano e meio João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira chegaram a Xabregas para montarem um novo ateliê no rés-do-chão de um prédio comprado por um colecionador que lhes cedeu o espaço por dez anos, havia muita gente a entrar-lhes por ali adentro sem bater. “As pessoas lembravam-se do sítio como sapataria, estavam habituadas a vir cá e entravam. Vinham falar connosco a perguntar o que isto ia ser, diziam ‘dava jeito aqui era uma mercearia’. Depois perceberam que não ia ser nada e desistiram.” Mesmo assim há quem já tenha ouvido à porta das vizinhas, “é das marchas, não vês que é das marchas?”

O bairro não lhes era estranho quando chegaram, há vários anos que trabalhavam com a Galeria Filomena Soares, na rua de trás, ali instalada desde 2001 — um espaço que inaugurou um êxodo que só há menos de dois anos teve continuidade em Xabregas, apesar das várias galerias (como a Baginski e a Underdogs) que têm aberto um pouco mais à frente, no Poço do Bispo, em torno da Fábrica do Braço de Prata, onde também Cabrita Reis tem o seu ateliê, num movimento apesar de tudo diferente daquele a que se assiste em Xabregas. Café com Calma, Beatus, Dinastia Tang, Entra são já pontos de paragem obrigatórios para esses lados, aos quais se juntaram também o Todos, um hub criativo, e o Lisbon WorkHub, um espaço de cowork.

Mas de regresso ao Bregas, o nome que deram ao ateliê que de vez em quando abrem ao público, como aconteceu em janeiro com o Grandioso Fim de Semana Bregas, João Pedro Vale e Nuno Alexandre Ferreira contam que só depois de chegarem se aperceberam que não eram os únicos artistas a mudarem-se para Xabregas. “Conhecemos o Tomás e a Sofia do Grilo há anos e, de repente, quando viemos para aqui, coincidência das coincidências, encontrámo-los.” Tomás Colaço e Sofia Aguiar, que chegaram uns meses depois, também não sabiam que eles lá estavam. “E não sabemos se não haverá mais alguém.”

Eles não sabem por quanto tempo vão ficar, mas para já serão dez anos. “E temos noção que neste período de dez anos vamos assistir à mudança disto, para o bem e para o mal, com coisas pelas quais também nós seremos responsáveis”, diz João Pedro Vale, para Nuno Alexandre Ferreira completar: “Quando a Filomena abriu a galeria, em 2001, não havia aqui nada. De repente, já tens ali à frente um núcleo de galerias e vai abrir ainda outra, de arte contemporânea, em frente à Baginski. Acredito que aí já seja uma coisa intencional. Começa a haver aqui muita coisa, começa-se a perceber que, se calhar, é porque as rendas são baratas ou porque há espaços grandes. E, de facto, como esta zona está muito desabitada e abandonada, as pessoas começam a procurar e encontram. E cada vez tens mais artistas a virem para aqui.”

Entre o final deste ano e o início do próximo, será a Ar.Co — Centro de Arte & Comunicação Visual a mudar-se para o desativado Mercado de Xabregas, cedido à escola artística ao abrigo de um protocolo com a Câmara de Lisboa.

“Adoro a ideia de termos este sítio que podemos abrir a outras coisas, como temos feito. E sentires que estás a fazer parte de um processo qualquer, e que ao estares a chamar outras pessoas elas também vão estar a fazer parte desse processo, que eu não sei qual é… Não sei se vai haver assim uma cena de Xabregas. Ou se calhar até vai.” Vamos ver.