Os homens atrás da cortina

Encontram-se regularmente para trabalhar. Esta noite são três os homens atrás da cortina, a entender-se como podem e sabem.

através de olhares, apertos de mão, palmadas nas costas, frases a meio, porque para bom entendedor… um terminou uma relação de anos há minutos, o outro tem um filho para nascer daqui a uns meses, eventualmente com problemas que durarão a(s) sua(s) vida(s) inteira(s), o terceiro está – hoje, por hoje – bem e recomenda-se. à vez, um atrás do outro vão desaparecendo – e não precisam de mais nada: os homens raramente falam dos seus problemas, basta-lhes a solidariedade tácita e cúmplice, fiadora responsável da ideia que, em querendo, podem ter essa sempre adiada conversa. é assim entre verdadeiros amigos e, aquele que esta noite está bem, sabe igualmente que um dia destes será ele a habitar fundo a fossa onde, lá em cima, na figurativa nesga de luz que mantém os homens em baixo, ainda assim longe da depressão, poderá contar com o mesmo tipo de carinho trapalhão mas sincero e inesgotável. talvez seja vergonha das lágrimas mas eles entendem-se assim.

quando terminarem a noite, estarão consolados. cumpriram a missão a preceito. os duzentos patrões da tarefa gostaram tanto que aplaudiram de pé. voltarão solitários para casa, onde as cortinas são menos espessas e a luz da manhã incomodará mais que o desafio bizarro de esperar pela sua vez de subir e trabalhar nesta empreitada. regressam à tristeza os dois que nela agora moram, encontrando conforto no zelo profissional. pois, os patrões são uma plateia com duas centenas de pagantes. as cortinas pertencem ao palco de um teatro. e os homens são comediantes.

ii – pelos amigos

e pela economia

as horas caem como uma avalanche e fazem com que se sinta o tempo cada vez mais inexorável. entre os compromissos de trabalho, as obrigações familiares e as distracções das novas tecnologias, estamos todos cada vez mais distantes da idade da inocência. urge por isso um manifesto, um ultimato, ou pelo menos um ‘ultifesto’ ou um ‘manimato’.

exijo recuperar a altura em que houve um bar na madragoa onde toda a gente sabia o teu nome – sim, como no cheers, a série de televisão cuja banda sonora do genérico cantarolávamos amiúde e hoje assombra-me os tímpanos de quando em vez, qual ‘otoverme’ irónico. o momento de anos dourados onde o marcos – brasileiro ex-bancário, ex-professor de natação, hoje agente imobiliário – era o melhor barman do mundo. perito a expulsar bêbados com elegância, autor de excelsas caipirinhas, concretização real dos seus congéneres cinematográficos, o tipo com quem se podia falar sobre tudo, mesmo já a sós e a horas pouco recomendáveis da noite.

nesse tempo, a travessa era um poiso acolhedor para umas 30 pessoas no máximo e, por costume, lei não escrita, sabíamos que em determinado dia da semana, numa escala retemperadora a cada oito dias, lá podíamos ir sem combinar rigorosamente nada que, decerto, encontraríamos amigos. preciso muito disso outra vez. um dia sem prazo de validade, sem telefonemas nem bebés chorosos, onde possamos estar. simplesmente estar.

por isso peço a colaboração dos pequenos e médios empresários nacionais. a travessa finou-se há anos. procuro um novo bar, símbolo da nostalgia supracitada. que seja confortável q.b., com música baixinha a convidar à conversa, resistente ao fascismo anti-tabagista e – se bem conheço alguns amigos – que não seja conservador em relação às drogas leves. preciso que me contactem e apresentem propostas, qual concurso público para fins privados. o vencedor será mencionado num e-mail lamechas, longo e feito de clamores: a vida é curta, o tempo urge, carpe diem.

essa missiva incitará os amigos desavindos pelas esquinas do quotidiano a reencontrarem-se, e nenhuma outra combinação será feita. ficarão a saber que, todas as quartas-feiras – nesse sítio que imagino mítico –, poderão ganhar tempo uns com os outros. antes que nos continuem a roubar horas de qualidade, diálogos de excepção, coincidências miraculosas, as almas dos que partem de vez.l

lfborgez@gmail.com