‘A espanholização da banca é cortina de fumo’

A entrevista tem lugar na sede do PSD, na Rua de S. Caetano à Lapa, numa sala de aspecto clássico, com gravuras antigas nas paredes. Passos Coelho chega com meia hora de atraso, vindo do Parlamento, onde participou na discussão do Plano de Estabilidade. Está vestido de acordo com a sala: fato azul-escuro, gravata vermelha…

‘A espanholização da banca é cortina de fumo’

Que propostas vai apresentar o PSD em relação à transparência nos altos cargos públicos?

Na próxima semana serão concretizadas várias medidas sobre essa matéria. Mas não é por falta de base legal que a nossa democracia não tem a qualidade que devia ter. Há muitas pessoas que acham que tudo se resolve com a lei. E nem tudo se resolve com a lei. Há muitas coisas que se resolvem com o bom senso, com uma certa ética na maneira de atuar. Reparem no que se passou recentemente com um grande amigo do primeiro-ministro que estava a ajudar o Governo em negociações importantes com agentes privados. Durante semanas, os jornais estavam pejados de notícias sobre o que o representante especial do primeiro-ministro estava a fazer: a negociar com bancos e com os acionistas da TAP, com os lesados do BES… e ninguém sabia o que é que o senhor estava a negociar. Estava a comprometer alguma posição do Estado português? Mandatado por quem? Havia conflitos de interesses? Nada disso era transparente. E o primeiro-ministro parece ter feito uma grande concessão em, finalmente, ter admitido que se calhar era melhor fazer um contrato… 

Há coisas que são óbvias e deviam ser cumpridas. Nós perguntámos ao primeiro-ministro há semanas: o que motivou a reunião ou as reuniões que terá feito com a Eng.ª Isabel dos Santos a propósito do BPI? Foi o Governo que tomou a iniciativa de a chamar ou foi ela que pediu uma reunião com o primeiro-ministro? O que negociaram lá? O que levou o Governo a interferir no processo de negociação entre acionistas privados de um banco privado que está cotado? Ainda não houve uma resposta. Semanas e semanas depois, nem por escrito nem no Parlamento. O Governo ignora olimpicamente as perguntas… 

Mas o Presidente da República respondeu…

…depois disso houve o anúncio de que as negociações tinham sido coroadas de êxito. Celebração! O primeiro-ministro vangloriou-se num debate quinzenal do resultado extraordinário que foi possível obter. Até o PR, de facto, veio dizer publicamente que, se não fosse o envolvimento de tanta gente, não se teria conseguido alcançar aquele resultado. Afinal, aquele resultado parece que não existiu. Não sei porquê. Não estou a par. Reporto-me apenas à comunicação que foi feita ao mercado. Afinal, não houve entendimento nenhum. 

Houve um ministro (e depois um secretário de Estado) que veio dizer que as negociações já tinham sido reatadas. O jornalista perguntou: ‘Então e o Governo agora vai acompanhá-las?’ Ao que o ministro respondeu: ‘Nem pensar! O Governo não se envolve nas negociações entre privados’. E nós perguntamos: então o ministro está publicamente a puxar as orelhas ao primeiro-ministro e a dizer que é intolerável o que ele fez? Foi o primeiro-ministro que lhe encomendou este responso público, para fazer de conta que nunca se meteu naquela conversa, que o Governo não se pode meter nas negociações com privados? Mas não sabia isso desde o início? 

Tudo isto está errado do princípio ao fim. Bastava ter o mínimo de bom-senso para perceber que, se o Estado quer ser visto de forma independente, só pode intervir para acautelar o interesse geral. Pode legislar para defender o interesse geral, não pode legislar para aquele banco e para aqueles acionistas. Hoje parece claro que se arranjou um problema político porque o Estado se meteu onde não devia. Tudo isto teria sido perfeitamente desnecessário. E mostra, enfim, uma ligeireza muito grande no exercício de funções públicas…

Refere-se ao diploma para desblindar os estatutos dos bancos, interpretado como destinando-se ao BPI? 

Não foi interpretado, foi assumidamente apresentado enquanto tal pelo próprio Governo! Que disse que teve esse diploma fechado à espera do bom resultado do BPI. Como o bom resultado não apareceu, então tinha de se avançar com isto, que já estava preparado. 

Acha, portanto, que Isabel dos Santos tem razão na sua crítica. E isto foi mau para as relações entre Portugal e Angola?

Acho que o Governo não devia ter, muito menos através do primeiro-ministro, interferido num processo que respeita à negociação que acionistas privados de uma instituição privada têm que ter. Um banco é relevante para a estabilidade financeira, mas a forma como o Governo atua para garantir a estabilidade financeira não é a arbitrar disputas entre acionistas privados de bancos privados. 

Se o Governo acha que há um risco muito grande de um banco poder afetar a estabilidade financeira, tem instrumentos para intervir. Pode intervencionar esse banco, pode nacionalizar esse banco, pode fazer muitas coisas. O que não pode mesmo, e não vale a pena fazer uma lei que o diga, basta o bom-senso, é intervir diretamente na negociação que cabe a parceiros privados. Seja de um banco, seja de qualquer outra empresa. 

Como vê esta polémica da ‘espanholização da banca’? Acha que há esse risco? 

Vejo como uma cortina de fumo. Essa cortina de fumo foi criada pelo Governo para tratar do dossiê BPI. O Governo tinha um decreto-lei preparado para dar a um banco espanhol a maioria do BPI, e ao lado criou uma polémica sobre os riscos da ‘espanholização’ que, pelos vistos, ele próprio não se importou de promover. Acho que tudo isto é de muita fraca qualidade. 

Não creio que haja um risco sério de ‘espanholização’ da banca portuguesa. O risco de podermos ter uma concentração grande de capital espanhol em Portugal só podia vir associado a alguma debilidade no Millennium BCP, que eu não vejo nenhuma razão para que possa ocorrer. Pode ainda acontecer que, no processo de venda do Novo Banco, um banco espanhol venha a comprá-lo. E se isso acontecer, a banca espanhola terá uma parte relevante do mercado nacional. Mas não será uma posição dominante. 

Esta área da banca tem estado muito agitada. Como vê o conflito entre o Governo e o governador do Banco de Portugal? Acha que pode ter consequências externas negativas para a imagem de Portugal?

Respondo que sim às duas questões. Sim, preocupa-me que haja um conflito alimentado pelo Governo entre os partidos da maioria relativamente ao governador do Banco de Portugal. E para quem olha de fora, um clima de diálogo negativo institucional entre o Governo e o Banco de Portugal é sempre penalizador para o país. O Governo, mais uma vez, diz uma coisa e faz outra. Vem dizendo que não alimenta querelas institucionais com o governador do BdP e que não quer a demissão do governador do BdP, e depois todos os dias a sua prática é exatamente ao contrário disso. 

Os partidos da maioria usam a Comissão Parlamentar de Inquérito ao Banif para tentar provar que houve uma falha grave do governador, que é aquilo que permite a sua demissão. Vêm insistindo na necessidade de mudar o modelo de supervisão para verem se, com isso, conseguem condições para mexer no governador. Mas depois vêm dizer que não. No Acção Socialista, que é o órgão oficial do PS, pede-se abertamente a demissão do governador. Mas o primeiro-ministro, depois, diz que não vai alterar as regras do jogo para substituir o governador. É um daqueles casos de hipocrisia política que beneficiávamos todos que pudesse ser removida. 

PSD e CDS têm seguido caminhos diferentes. Ainda é possível concorrerem juntos em futuras eleições?

Eu não queria antecipar uma decisão. Parece-me positivo que cada um siga o seu caminho. Não são caminhos divergentes. Registámos a vontade declarada pela nova líder do CDS em ir isoladamente a futuras eleições, não fazendo nenhuma coligação com o PSD. E é a premissa normal. Não aconteceu em 2015 pela circunstância excecional de que estávamos no Governo em coligação, e tínhamos um resultado conjunto para apresentar aos portugueses. 

Admite uma coligação com o PS depois das próximas eleições? 

Qualquer resposta seria suficientemente defensiva para não valer coisa nenhuma. O que prefiro sublinhar hoje é que o PS tem uma escolha feita que não é compatível com um Governo com o PSD. Isso parece-me evidente. O PS, no essencial, está apostado em fazer ou o contrário ou em desfazer o que nós fizemos no Governo. Isso não é uma base de entendimento para coisa nenhuma. O PS escolheu um caminho completamente diferente. O que é que o PS vai ser no futuro? Como é que se vai posicionar no futuro? Que liderança vai ter no futuro? Que linhas de orientação vai seguir no futuro? Não sei. Se forem as de hoje, não me parece que um Governo com o PS faça qualquer sentido. 

O que é que mudou essencialmente na sua vida desde que deixou de ser primeiro-ministro?

Não tenho mais tempo livre do que tinha. Não tenho no meu dia-a-dia uma rotina muito diferente, exceto que evidentemente as tarefas são muito diferentes. Ser primeiro-ministro não é a mesma coisa que ser líder da oposição. Seja no plano externo e internacional, seja no plano interno, as minhas preocupações do dia-a-dia são muito diferentes. Organizar uma oposição não é a mesma coisa que organizar um Governo. Mas a minha vida não é muito diferente do que era, não. A minha mulher tem alguma pena. Achou que, deixando o Governo, eu ia ter muito mais tempo para dedicar à família. E isso, pelo menos até ver, ainda não se traduziu em nada de muito real. 

E a reação das pessoas na rua em relação a si mudou? 

A pergunta pressupõe que, enquanto fui primeiro-ministro, existisse hostilidade. Eu nunca senti tal hostilidade. Queria desde já tirar isso do caminho da minha resposta. Mas uma coisa é as pessoas abordarem um primeiro-ministro, outra coisa é abordarem o líder da oposição. São coisas completamente diferentes. Em todo o caso, continuo a sentir a preocupação das pessoas em quererem falar comigo e em dirigirem-se a mim. Uns para transmitir o que pensam, outros para caracterizar a situação, outros ainda para me dar alento ou para perguntar o que vamos fazer e como estamos a ver isto para o futuro. O interesse das pessoas não diminuiu e isso agrada-me.