Lucia Berlin. A história das coisas que aconteceram

Na sua entrevista com Oriana Fallaci, em 1972, o então conselheiro de segurança nacional Henry Kissinger, reflectindo sobre o percurso que acabou por o transportar do mundo académico para os corredores do poder e da alta diplomacia, conclui que as coisas lhe aconteceram porque tinham de acontecer, comentando logo a seguir, numa das muitas derivas que mais tarde o levariam a considerar esta entrevista o mais desastroso pedaço de conversa com a imprensa de toda a sua vida, que sobre o que não aconteceram ninguém diz o mesmo, que “a história das coisas que não aconteceram nunca foi escrita”. No conto de Lucia Berlin (1936-2004) que encerra Manual para mulheres de limpeza, intitulado Voltar a casa, a protagonista ensaia uma pequena história das coisas que não aconteceram, depois de, por mero acaso, ter reparado que todas as noites um grupo de corvos acorre à mesma árvore, visível do alpendre da frente: “Que outras coisas perdi? Quantas vezes na minha vida terei estado, por assim dizer, sentada no alpendre das traseiras, não no da frente? O que teria sido dito que não consegui ouvir? Que amor poderia ter havido que eu não senti?”

Daqui até ao final do conto, uma a uma, as perigosas portas do passado vão sendo preambuladas com «e ses» até que, perante aquilo que, necessariamente, teria representado um locus intransponível, surge uma conclusão não menos surpreendente para o leitor do que para a própria protagonista: “E se aquilo tivesse acontecido, o terramoto? Sei o que teria acontecido. Esse é o problema dos «e ses». Mais tarde ou mais cedo deparamo-nos com um obstáculo. Eu não teria podido continuar em Patagonia (…) Teria havido muito daquilo a que eles chamariam «mau comportamento, a que o psicólogo chamaria pedidos de ajuda. Depois da minha saída do reformatório, não tardaria muito a fugir com um caçador de diamantes que estava de passagem pela cidade, com destino a Montana e… acreditam nisto? A minha vida teria acabado exactamente como está agora”.

Este conto ocupa um lugar central na sequência de histórias que compõem Manual para mulheres de limpeza, ganhando um significado muito particular por se tratar de uma contista com um pendor biográfico tão evidente – na verdade toda a ficção o é um pouco, Lucia Berlin limita-se a quase nada fazer para mascarar essa obviedade. Não podemos deixar de olhar para este questionamento, esta história das coisas que não aconteceram, como uma pergunta que é tão familiar à personagem quanto à autora. Parte da desarmante qualidade destes contos está exactamente no seu pendor biográfico, não porque a autenticidade seja, na ficção, um valor automático, mas porque estas histórias compõem uma verosimilhança transmissível, capaz de superar alguns dos pormenores hiperdatados com que Lucia Berlin vai ornando a sua prosa. Malgrado os encómios que tantas vezes se elaboram à volta da veracidade e honestidade em ficção, a verdade é que estas supostas qualidades poucas vezes aportam, por si só, grandes vantagens à prosa.

Um dos filhos de Lucia Berlin, citado no prefácio de Lydia Davis – o qual a edição portuguesa inclui – refere que a autora “escrevia histórias verdadeiras, não necessariamente autobiográficas, mas suficientemente próximas para encaixarem”. Talvez esta sugestão mereça uma certa inversão. O recreio de Lucia Berlin não é exactamente a autoficção, como esta frase pretende sugerir. O que sucede é que a escrita de Lucia Berlin leva a primeira pessoa ao extremo absoluto compondo uma voz que é profundamente autobiográfica sem que isso implique, ao mesmo tempo, que seja verdadeira ou, principalmente, sem que importe muito que o seja. Neste ponto, e neste ponto apenas, há uma certa paridade com Bukowski ou, talvez mais ainda, com uma aproximação à ficção curiosamente próxima dos autores da não-ficção, em especial, do New Journalism. Lucia Berlin pertence àquele grupo de escritores que manifesta já o impacto que a revolução do jornalismo nos anos 60 e 70 significou para o esbatimento das fronteiras entre ficção e não-ficção.

Tal como os melhores representantes do New Journalism, a qualidade fundamental de Lucia Berlin enquanto narradora é a sua sempre evidente capacidade de observação, sobre a qual até mesmo uma das suas narradoras elabora: “Durante anos, quando eu e a Sally nos juntávamos, falávamos obsessivamente sobre o quão doida e cruel eras. Mas nestes meses… bem, acho que é natural que, quando se está a morrer, se queira convocar o que importa, o que foi bonito. Temo-nos lembrado dos teus gracejos e do teu modo de observar, sem deixares escapar nada. Deste-nos isso. Observar”. Esta capacidade de observação permite à autora compor enquadramentos visuais particularmente complexos e com diversos focos de atenção, fazendo os detalhes funcionar mais ou menos como os vasos no quadro O Banho Turco de Ingres, dispersando o arco pictural e obrigando o leitor a um constante reenfoque e produzindo, com fenomenal acuidade, a sensação de ser o receptor imediato de toda a conversa.

O efeito é, ainda, complementado pela economia estilística da autora. Na verdade, esta economia, que tantas vezes a torna comparativamente vizinha de um Raymond Carver, é quase sempre aparente e, mais que isso, propositada, procurando aproximar a voz do narrador da pura oralidade e do pensamento imediato, o que Lucia Berlin consegue como muito poucos.

Seguida, durante a sua vida, por um grupo de leitores destacadamente modesto e com uma obra discretamente publicada, mais do que uma descoberta literária, Lucia Berlin é uma dívida antiga. Talvez seja a última grande contista da sua geração, principalmente aquela a que mais tarde os leitores e a crítica começaram a chegar, mas pouco exagero há em dizer que está entre as melhores, senão mesmo a melhor. Um leitor treinado e conhecedor das estratégias e mercantilices do meio editorial português talvez se sentisse tentado a desconfiar de tudo isto. Os fenómenos literários dos últimos anos deixaram um excesso de sabor a pouco. Com Lucia Berlin a história será diferente. E se não for, coitados de nós.