Os cidadãos genéricos

O mundo virtual transmite a uma franja considerável e – muito – ingénua de pessoas a ilusão de que habitam um mundo livre de publicidade. Revoltam-se amiúde contra ela sem aparentemente se aperceberem de que os fóruns onde ‘postam’ a sua indignação são ladeados por uma coluna com os mais variados links e banners com…

quando o product placement acontece no reino televisivo, claro que a supracitada raivinha é tão ou mais latente. se o canal for do estado, ui, pior ainda. escapa-lhes, entre outras coisas, o essencial: quanto mais dinheiro entrar por via publicitária, menos sai do bolso do contribuinte.

e dou por mim a imaginar o aspecto destes revolucionários anti-pub: vestirão decerto serapilheira; quando afligidos por problemas de saúde, aviam-se exclusivamente com medicamentos genéricos; jamais envergaram um logotipo – seja na roupa, telelé, carro, acessórios, etc; e, coitados, nunca foram a um festival (ele é tmn, ele é super bock, ele é optimus…).

calculo que até a sua hipocrisia seja de marca branca.

ii – o intrínseco de manolo

somos um país com orgulho, justificado, na sua literatura. mas devemos reconhecer que muitos dos nossos autores parecem escrever de smoking, persuadidos da sua importância e solenidade da tarefa autoproposta, envolvidos num aparente esforço épico para impressionar miúdas afogueadas com a extraordinária quantidade de palavreado caro que dominam, e avessos à narração de uma história, boa – se possível, como se isso fosse indigno de um intelectual prezado.

por tudo isto e mais que contarei, foi um prazer apresentar o primeiro romance de joão rebocho pais, o intrínseco de manolo, editado pela teorema. confessa-me a carismática editora maria do rosário pedreira que, em cerca de 200 manuscritos recebidos por ano, este foi um dos cinco ou seis claramente válidos – espécie de pote-de-ouro no fim do arco-íris. e diz ainda que nem imagino o quão (mais) difícil se tornou o trabalho dos editores após a explosão comercial daquilo que podemos chamar ‘romance de celebridade’… o comum contribuinte começou legitimamente a pensar que, se este ou aquele apresentador de televisão pode, então eu também posso. valha-nos o criador pela invenção da internet, caso contrário já não sobraria amazónia com tanta árvore assassinada em prol da banalidade em capítulos, tomos e trilogias.

o dia do lançamento, na mítica buchholz, foi apenas o segundo em que estive com o autor. conhecemo-nos como convidados e adeptos do glorioso num programa da benficatv. ‘red jan’, como é conhecido entre os amigos e família encarnada este enérgico comissário de bordo, proprietário de um sorriso de anúncio e autor de uns ‘passou-bem’ à antiga, à homem, com o vigor das pessoas de carácter, desafiou-me no final da entrevista a, coiso e tal, apresentar-lhe um livro. foi assim, tão instintivo e de passagem, que nunca presumi tratar-se de um romance, jamais imaginei que o devorasse página após página até à tristeza de o ver já terminado, nem supus que – no meio de tanto riso – me comovesse de repente, com uma ternura ágil e a certeza de um autor que, logo à primeira obra, encontrou a sua voz.

deixo as críticas para os entendidos, e elas aliás andam aí na imprensa, tecendo justas loas. prefiro nesta croniqueta destacar o ambiente da apresentação, como há muito não assistia. amigos, família, outros autores da editora num espírito encantador, a viver aquela pureza das primeiras vezes, às vezes tão falha em eventos do género – que acabam por tornar-se formais, aborrecidos, como se já ninguém fosse atraído pelo cheiro do papel acabado de imprimir. e a magia das improbabilidades: o plano de jrp era apenas fotocopiar uma história e distribuí-la entre amigos. um deles, qual garimpeiro, percebeu que ali havia ouro e fez-nos a todos o favor de enviar o manuscrito à teorema. agradeço como leitor, aplaudo como escriba, e saúdo de abraço sincero e apertado como futuro amigo de toda esta gente boa. l

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