Até onde se pode ir no jogo das personagens?

Esta semana fiquei um bocado irritada quando o meu amigo P.M. me veio dizer que a Vanessa era o meu alter ego. É falso. A Vanessa faz coisas estúpidas que eu critico profundamente. É uma personagem, não é um alter ego. Mas até onde se pode ir?

Esta semana, liguei ao meu amigo P.M. por causa de qualquer coisa. (O meu amigo P.M. é um católico um bocado reacionário, palavras dele).

– Então queres converter-te ao catolicismo? Eu posso dar-te umas indicações.

– Eu? Eu não! Quem quer é a Vanessa. 

– Mas a Vanessa é o teu alter ego.

– Qual alter ego!!!! Não é nada. Achas que eu sou tão doida como a Vanessa????? Uma personagem não é um alter ego. Eu não faço as coisas estúpidas que ela faz e não me quero converter ao catolicismo. Pelo menos para já. 
– Mas sempre achei que tu eras a Vanessa.

– Oh pá, isso irrita-me. Eu não sou a Vanessa. A Vanessa dá confiança a malucos. Tipos que acham que vão ser Presidentes da República. Aqui há dias meteu-se com uma personagem tipo Donald Trump, aquele género sociopata-com-falta-de-empatia-capaz-de-gritar-com-criancinhas-que-choram. 

O meu amigo P. M. não queria acreditar.

– A Vanessa fez isso?

– Oh pá, fez. É doida. Não sei o que lhe faça. A culpa é só dela, não é de mais ninguém. Uma pessoa que não identifica um sociopata ao longe precisa de tratamento. 

O meu amigo P.M. pediu-me para não ser tão crítica com a Vanessa. Como bom católico, P.M. achava que a Vanessa devia perdoar-se a si própria e ao sociopata. 

Tendo em conta a situação em que estava a Vanessa,  irritou-me mesmo muito que o meu amigo achasse que ela seria o meu alter ego. Como toda a gente, já fiz algumas palermices na vida, mas não tantas.

Confesso que a história da identificação da Vanessa como meu alegado alter ego tem-me trazido vários problemas ao longo dos anos. No tempo em que a Vanessa tinha um namorado novo a cada três meses fui a Timor em trabalho e, sem saber bem como, acabei na mesa de um restaurante com várias pessoas que não conhecia, a maior parte portugueses. Não me esqueço do olhar lascivo de uma criatura que olhou para mim e disse: “Ohhh, és a Vanessa”. Tive que pôr aquela cara n.º3 que todas as mulheres usam como repelente antimosquitos e que funciona sempre. Se a Vanessa usasse o repelente antimosquitos com esta facilidade não se metia nestas alhadas com sociopatas. A culpa é dela. As mulheres estúpidas pagam sempre mais impostos ao fisco dos sentimentos. 

– Não sejas tão dura com a Vanessa, pediu-me o P.M.

– É que me irrita que haja outras pessoas que pensem como tu, que achem que a Vanessa é o meu alter ego.

Enfim, isto não vale nada. 

Quem tem histórias divertidíssimas sobre as trapalhadas entre as personagens de ficção e a ideia de alter ego é David Lodge. Na autobiografia, o genial escritor britânico (“Quite a good time to be born”) conta uma parte da sua história pessoal e faz uma confissão quase inverosímil, mas corajosa, porque extremamente rara: nunca se masturbou. Mas no seu livro “Até onde se pode ir” uma das personagens masturba-se compulsivamente, mas não consegue confessar o “pecado” ao padre e evita a comunhão a todo o custo. Quando o livro saiu, em 1980, um crítico da BBC Rádio anunciou ao mundo: “É óbvio que o masturbador compulsivo e culpabilizado é o próprio David Lodge”.

Na autobiografia, Lodge conta: “Fiquei desconcertado ao ouvir isto comunicado à nação, mas não desmenti. Havia alguns traços na personagem de Michael que eram parecidos comigo, ele também estudava inglês na universidade e tinha feito uma pós-graduação na obra de Graham Greene. Em qualquer caso, em 1980, já não havia qualquer culpa associada à masturbação – pelo contrário, era aceite, eventualmente recomendada. Na realidade teria sido mais embaraçoso admitir nunca tê-lo feito”.