García Lorca foi assassinado há 80 anos e o caso ainda é um enigma

O poeta e dramaturgo espanhol foi assassinado há precisamente 80 anos, em agosto de 1936. Os seus restos mortais, no entanto, nunca foram localizados. Como ele previra num poema de 1929: “Não me encontraram?Não. Não me encontraram”

Quando as formas puras se afundaram
sob o cri cri das margaridas,
compreendi que me tinham assassinado.
Foram aos cafés e aos cemitérios e às igrejas,
abriram os barris e os armários,
destruíram três esqueletos para arrancar os seus dentes de ouro.
Já não me encontraram.
Não me encontraram?
Não. Não me encontraram.
Mas soube-se que a sexta lua subiu torrente acima
e que o mar recordou – de imediato! – os nomes de todos os seus afogados.

A 16 de agosto de 1936 um grupo de homens da Guardia Civil apresentava-se na residência da família do poeta Luis Rosales, nos arredores de Granada. Pelo sim, pelo não, a casa fora previamente cercada por tropas de assalto para que não houvesse escapatória possível.

No mandado de detenção lia-se o nome não do proprietário, mas de um colega de ofício: Federico García Lorca. Sabendo que corria perigo, Lorca decidira refugiar-se em casa do amigo, após ter recusado as ofertas de asilo do México e da Colômbia. No mesmo dia 16, foi fuzilado o cunhado de Lorca, que um mês antes assumira o cargo de alcaide de Granada. A Guerra Civil Espanhola rebentara em meados de julho e viviam-se tempos tumultuosos e sangrentos.

Levado para o Governo Civil de Granada, de onde partira a ordem de detenção, Lorca seguiu depois para uma aldeia próxima, onde passou a noite na prisão. Na madrugada de dia 19, os guardas levaram-no de automóvel. Na estrada entre Víznar e Alfacar, num lugar conhecido por Fuente Grande, convidaram-no a sair para um passeio. Faltavam quinze minutos para as cinco da manhã (e não da tarde, como no poema), quando o poeta viu pela última vez ao longe a sua amada Granada. Em seguida ouviram-se disparos e, atingido pelas costas, caiu no chão. Foi “enterrado naquelas paragens, muito à flor de terra, […] num lugar muito difícil de localizar”.

Socialista, maçon e homossexual

Passadas oito décadas várias questões continuam por esclarecer na morte de Lorca. Embora professasse ideias socialistas, possuía amigos dos dois lados da barricada (aliás, refugiara-se em casa de Rosales justamente por causa das ligações desta família aos falangistas). Ter-se-á devido o seu homicídio a motivos puramente políticos?
Num relatório tornado público no ano passado, o poeta era declarado “socialista” e “maçon, pertencente à loja Alhambra, em que adotou o nome simbólico de Homero”. Mas há mais: o relatório também o acusava de “práticas de homossexualidade e aberração”.

Miguel Caballero, autor de “Las trece últimas horas en la vida de García Lorca”, publicado em Espanha pela Esfera de los Libros, avança porém outra hipótese. Ao “El País”, Caballero afirmou que se terá tratado de uma intriga familiar, uma espécie de ajuste de contas. Até porque um dos homens que participaram na detenção era Juan Luis Trescastros, “familiar distante do poeta e ao mesmo tempo homem de confiança da família Roldán, inimiga dos García Lorca”.

Na vanguarda em Madrid e em Nova Iorque

Federico del Sagrado Corazón de Jesús García Lorca nasceu a 5 de Junho de 1898 no seio de uma família com posses: o seu pai era um abastado proprietário rural, o que o levou a crescer no campo e a procurar sempre o contacto com a natureza. Na adolescência, Lorca revelou inclinação para a música, estudou piano com um professor particular durante seis anos e chegou a sonhar com uma carreira nessa área.

Mas acabaria por ser a escrita a revelar-se a sua grande vocação. Publicou o primeiro livro, “Impresiones y Paisajes”, quando tinha 20 anos. No ano seguinte, 1919, escreveu a primeira peça de teatro, que se tornou, no entanto, motivo de chacota do público.

Também nesse ano foi para Madrid, onde conheceu figuras da vanguarda como o cineasta Luis Buñuel e Salvador Dalí, por quem teve uma paixão não correspondida. Ainda assim, o poeta e o artista chegaram a colaborar, e foi Dalí quem criou o cenário para a sua segunda peça, “Mariana Pineda”, um sucesso estrondoso, em contraste com a sua estreia como dramaturgo.

No entanto as relações com Dalí e Buñuel acabaram por se degradar e Lorca viu na obra-prima do cinema surrealista, “Un Chien Andalou”, um ataque à sua pessoa.

Estando ao corrente do desentendimento, Fernando de los Ríos, político socialista e amigo da família, sugere ao pai de Lorca uma temporada nos Estados Unidos, para aprender inglês e estudar na Universidade de Columbia.

O poeta e o amigo fazem a travessia do Atlântico a bordo do Olympic, o navio-irmão do Titanic e desembarcam em Nova Iorque a 26 de junho de 1929.

É ali que Lorca escreve, a par de “Romancero Gitano”, um dos seus livros mais célebres, “Poeta en Nueva York”, só publicado em 1940, o ano a seguir à sua morte. Um dos poemas ali reunidos chamava-se “Fábula y rueda de los tres amigos” e dizia o seguinte:
“Foram aos cafés e aos cemitérios e às igrejas,
abriram os barris e os armários,
destruíram três esqueletos para arrancar os seus dentes de ouro.
Já não me encontraram.
Não me encontraram?
Não. Não me encontraram”.
Em 2009, 80 anos depois de estas palavras terem sido escritas, uma equipa de arqueólogos da universidade de Granada foi à procura das ossadas do poeta. Ao fim de duas semanas de escavações, não havia entre o material desenterrado nem ossos, nem tecidos, nem cápsulas de balas. Como Lorca tinha previsto em 1929: “Já não me encontraram”.