O talento de Gustavo

Começou a dirigir orquestras com 12 anos e em 2017 vai ter direito a uma estrela no Passeio da Fama. Gustavo Dudamel, ou simplesmente ‘The Dude’, como é conhecido nos EUA, atua esta semana na Gulbenkian. O maestro mais carismático e popular do momento traz a Orquestra Simón Bolívar para dois concertos que se preveem…

Uma boa notícia para os amantes de música: o ano de 2017 começará embalado pelo ritmo contagiante de Gustavo Dudamel. A 1 de janeiro, o prodígio venezuelano de 35 anos tornar-se-á o mais jovem maestro de sempre a dirigir a Filarmónica de Viena no tradicional Concerto de Ano Novo, no sumptuoso salão da Musikverein.

Maestro titular de duas orquestras (a Simón Bolívar e a Filarmónica de Los Angeles) e convidado habitual dos mais prestigiados agrupamentos do mundo, Dudamel está habituado a operações desta envergadura. Em 2015 gravou duas músicas da banda sonora de Star Wars: O Despertar da Força, e já este ano partilhou o palco com os Coldplay e Beyoncé na 50.ª edição do Super Bowl (final do campeonato de futebol americano). A cerimónia foi transmitida para 167 milhões de pessoas.

É esta superestrela do firmamento musical global, também conhecido por ‘The Dude’ (expressão idiomática que poderá ser traduzida por qualquer coisa como ‘O Bacano’) que o Grande Auditório da Fundação Calouste Gulbenkian (FCG) recebe nos próximos dias. A 5 de setembro (segunda-feira), um concerto do Quarteto de Cordas Simón Bolívar (com obras de Brahms, Chostakovitch e do compositor argentino Alberto Ginastera) servirá de aperitivo para o ‘prato forte’, dias 7 e 8 (quarta e quinta feira).

O que podemos esperar dos concertos da Gulbenkian? «Sempre que recebemos os ensembles venezuelanos do El Sistema são acontecimentos especiais, e penso que, desta vez, não será diferente», considera o diretor do Serviço de Música da Gulbenkian, o finlandês Risto Nieminen.

Já o crítico musical Jorge Calado, que viu o maestro atuar por mais de uma vez e voltará a vê-lo agora em Lisboa, salienta a «espontaneidade» como uma das principais virtudes de Dudamel. «Ele nunca dirige as mesmas peças da mesma maneira. Tudo depende do mood da ocasião, do público, do ambiente na sala… Ele responde a isso». 

As atuações da Orquestra Simón Bolívar são marcadas por uma atmosfera informal que dificilmente associamos ao universo da música erudita. «Há muito mais emoção e descontração, de parte a parte (orquestra e público), e grande empatia mútua. O público vai com a intenção de gostar e gozar, e a orquestra quer comunicar e agradar», considera Jorge Calado. O crítico encontrou um «ambiente semelhante nos concertos da Multi-Story Orchestra, em Londres, num parque de estacionamento desativado, em Peckham, que atraem uma multidão de várias etnias e camadas sociais, que nunca puseram os pés num concerto de música dita clássica». De resto, esse é justamente um dos desideratos de Dudamel: chegar aos 99% da população que desconhecem este género de música.

‘Adora Lisboa’
Dudamel chegará à Gulbenkian depois de ter passado por Milão (onde dirigiu a ópera ‘La Bohème’, no La Scala) e por Londres, onde atua dia 4 nos Proms, uma festa anual, popular entre os londrinos, sediada no Royal Albert Hall. O programa dos Proms é idêntico ao do concerto de dia 7 em Lisboa, destacando-se as ‘Bachianas’, do brasileiro Heitor Villa-Lobos, ‘Hipnosis Mariposa’, do compositor venezuelano contemporâneo Paul Desenne, e duas peças de Maurice Ravel. «As inflamadas interpretações das ‘Bachianas Brasileiras’, por Gustavo Dudamel e pela Orquestra Sinfónica Simón Bolívar, adquiriram já uma aura quase lendária», refere uma nota da FCG.

No dia 8, a Orquestra Simón Bolívar interpreta ‘Turangalîla-Symphonie’, de Olivier Messiaen, que a FCG descreve como uma «sinfonia em que o compositor francês Olivier Messiaen se propôs criar um imenso e desmedido canto de amor, contagiado pelo seu fascínio pelo misticismo e pelos sons da natureza». Os três concertos inscrevem-se na residência do El Sistema na Gulbenkian, iniciada em outubro de 2015 e com final previsto para a temporada 2017/2018. Além dos concertos, «cada visita [dos músicos venezuelanos] inclui ensaios abertos aos jovens e ensaios conjuntos com a Orquestra Geração, de Lisboa», revela Risto Nieminen.

A relação entre a fundação e o maestro venezuelano remonta a 2004, quando Dudamel venceu o prémio Gustav Mahler de direção de orquestra em Bamberg, Alemanha. «Na altura ele era ainda completamente desconhecido na Europa», diz Nieminen. «Lawrence Foster, então diretor musical da Orquestra Gulbenkian, estava no júri e convidou-o para conduzir a nossa orquestra em Lisboa em 2006. Desde então tem tido uma relação muito próxima connosco». Dudamel «adora Lisboa», continua o finlandês, e «quando aceitou pela primeira vez dirigir a Orquestra Sinfónica da rádio Bávara quis que o período de ensaios antes do primeiro concerto decorresse no Grande Auditório. Tem vindo tocar regularmente para o nosso público, com as diferentes orquestras em que tem estado envolvido: a Sinfónica Simón Bolívar da Venezuela (agora pela segunda vez), a Sinfónica de Gotemburgo, a Filarmónica de Los Angeles (a sua atual orquestra) e a Orquestra Jovem Ibero-Americana».
Soldadinhos a formar uma orquestra
Gustavo Dudamel Ramírez é um produto do El Sistema, um programa de educação musical idealizado em 1975 por José António de Abreu e que abrange crianças e jovens de todas as regiões e de todas as camadas sociais venezuelanas. Só em 2015 participaram nele 700 mil jovens músicos.

Nascido a 26 de janeiro de 1981 em Barquisimeto, um importante centro industrial e a quarta cidade mais populosa do país, com dois milhões de habitantes, o maestro é filho de um trombonista e de uma professora de canto, que lhe proporcionaram o ambiente familiar ideal para se tornar músico. Em pequeno sonhava crescer para ter os braços suficientemente grandes para segurar num trombone, mas os professores acharam mais apropriado ensinar-lhe violino. «Lembro-me de ter um jogo favorito. Tinha soldadinhos de brincar, mas não com armas. Colocava-os em posições de orquestra e punha música a tocar, e eu era sempre o maestro», recorda Dudamel na sua página na internet.

Um dia, quando tinha 12 anos, a brincadeira ganhou contornos reais. «Estava num ensaio em Barquisimeto e o maestro tinha adoecido». Gustavo pegou na batuta. «Não tinha estudado. Limitei-me a pensar ‘Eu consigo fazer isto’. E foi divertido, porque os meus amigos estavam ali, a tocar. Riram-se todos, mas cinco minutos depois isso tinha mudado, pensaram ‘Agora é altura de trabalhar’. Isso foi muito bonito». 

Aquilo que nos parece quase prodigioso, Dudamel considera-o natural. «Havia muitos outros miúdos maestros. Quando eu tinha doze anos, tinha um amigo maestro de oito. Dirigia obras de Rossini, Charpentier e o hino nacional. Na Venezuela isto é normal».

‘Nunca grita’
Embora Dudamel responsabilize o El Sistema pelo seu sucesso, Risto Nieminen não tem dúvidas: «Ele é um talento nato. Claro que estudou muito intensamente, mas conseguiu manter a sua forma natural de tocar com os músicos com que trabalha», declara o responsável da FCG. «A sua atitude é a mesma, quer dirija a Filarmónica de Berlim ou uma orquestra de jovens. Fala de forma muito suave, nunca grita, mas a sua presença faz com que os músicos o respeitem da mesma forma que ele os respeita. O seu conhecimento musical é muito abrangente e dirige quase sempre sem ter a pauta à frente».

Jorge Calado também vê em Dudamel «um músico cheio de talento e com um espetro relativamente largo». Ressalva, no entanto, que não o imagina «a dirigir música barroca, ou Haydn, ou Boulez, mas já o vejo a dirigir Messiaen» e que «é muito novo, ainda não viveu e sofreu o suficiente para poder dar-nos a agonia e o êxtase de muita grande música, embora saiba que sofreu bastante com a separação da mulher e mãe do filho».

De Dudamel e da sua orquestra, o crítico musical recorda um concerto «memorável, num Coliseu a abarrotar». «Saí de lá feliz, com um daqueles blusões amarelo-azul-e-vermelhos da Orquestra», refere, aludindo aos casacos com o padrão da bandeira venezuelana que os membros da sua orquestra envergam nalgumas ocasiões e de que o presidente Nicolas Maduro também é fã.

E haverá algo de especificamente latino na forma como Dudamel e a sua orquestra abordam a música clássica? Risto Nieminen acha que não: «Não sinto nada de especialmente latino-americano quando ele dirige reportório clássico. Vi-o a ensaiar as sinfonias e concertos para piano e orquestra de Brahms em Berlim, com [Daniel] Barenboim como solista, e ele produziu um som verdadeiramente germânico, como esta música exige. Claro que, quando dirige música latino-americana ou as danças sinfónicas de ‘West Side Story’, de Bernstein, o seu sentido natural do ritmo revela as suas origens».

Risto conhece Dudamel desde que, em 2008, o convidou para fazer uma residência no Festival de Helsínquia. «É uma pessoa normal e é fácil trabalhar com ele», considera o finlandês. «Ele é generoso com o seu tempo: se os músicos ou alguém lhe pedir um conselho, ele tenta sempre arranjar tempo para isso. Também é muito leal às pessoas e comigo manteve sempre a palavra».