Eu e o Saraiva

As despedidas são momentos de esclarecimento e paragem, memória e revisitação. Esta é a minha derradeira crónica no SOL. Na próxima semana, pela primeira vez em 15 anos ininterruptos, não passarei os dias a pensar no tema nem no ângulo.

É importante saber parar. Olhar para dentro, olhar para a frente. Começar por olhar para trás. Entrei no jornalismo em 1983, aos 20 anos, candidatando-me a um estágio n’O Jornal. Tenho a carteira profissional 904. Devo a José António Saraiva o convite para escrever uma crónica semanal, então no Expresso.

Foi no fim do ano de 2001, quando o projeto que a Helena Matos e eu lhe tínhamos proposto – uma revista feminina chamada Única, com design de Jorge Colombo, que sairia uma vez por mês com o Expresso – acabou por não se concretizar, por se entender que canibalizaria as revistas femininas do grupo.

José António Saraiva publicou então todos os trabalhos que já tínhamos realizado para essa publicação na revista do Expresso (que viria mais tarde a rebatizar precisamente com esse título, tendo tido a gentileza de nos pedir autorização para isso), e propôs-me que escrevesse uma crónica «para as mulheres». Ri-me, e disse-lhe: «Uma crónica feminina, é isso?».

O título pareceu-lhe bom; homenageava uma publicação muito popular na minha infância, e onde aliás eu recebera, aos 12 anos, o meu primeiro salário – 500 escudos – a título de prémio de um concurso, por uma carta de amor escrita à minha mãe e enviada por uma prima, leitora da revista.

A mim, o título pareceu-me irónico, mas não lho disse, não fosse ele arrepender-se do convite. Meses depois, José António Saraiva disse-me que eu não escrevia nada do que tínhamos combinado, e que discordava de 90%, ou mais, do que eu escrevia – mas que apreciava o meu tom e a minha liberdade de pensamento. Aconselhava-me apenas a que abrisse mais parágrafos, para facilitar a vida aos leitores.          

Eu já tinha pertencido à redação do Expresso – entre 1989 e 1993 – mas raramente nos cruzávamos.

O Expresso era um universo vasto de clubes fechados, onde a política e a cultura não se misturavam; cada um tinha os seus contactos e o seu território; e quem, como eu, tivesse manias transdisciplinares e se entusiasmasse tanto pela crítica literária como pela reportagem política, não poderia criar ali raízes nem conquistar respeito ou defensores. Mas essas coisas são fáceis de ver depois, e de fora.

Creio que, nessa época, só uma vez troquei impressões com José António Saraiva, numa reunião geral de redação que visava a remodelação da Revista.

Quando chegou a minha vez de falar, falei mesmo: vinha da então novíssima tradição de O Independente, onde cada um dizia o que pensava, com veemência e frontalidade, e todos tinham direito a opinar, do diretor ao paquete, até porque cada um fazia ali o que fosse preciso – éramos muito poucos, no máximo, um terço do Expresso, e muitíssimo jovens.

Lembro-me que às tantas Ricardo Costa me interrompeu para dizer que já chegava de críticas, e que certamente o diretor, que dirigia há tantos anos o «cruzador» que era o Expresso, saberia melhor do que nós o que conviria ao jornal. Calei-me. José António Saraiva, que ouvia em silêncio o que cada um dizia, tomando notas, olhou-o demoradamente e depois disse-me: «Continue, Inês, estou a gostar de a ouvir».

Acabei por deixar o Expresso pouco tempo depois, aceitando um convite para dirigir a edição portuguesa da Marie Claire; e quando, sete anos volvidos, lhe aparecemos, a Helena e eu, com o tal projeto da revista Única, José António Saraiva disse-me que ninguém regressava ao Expresso depois de ter saído.

Respondemos em uníssono, e para seu espanto, que não queríamos entrar no Expresso, nunca, mas apenas vender ao jornal, chave na mão, uma revista pronta, que faríamos por nossa conta. Apreciou o projeto, e julgo que também a nossa franqueza.

Em 2011, Ricardo Costa, recém-nomeado diretor do Expresso, telefonou-me uma noite, estava eu a jantar com Rui Zink, para me propor que a minha crónica passasse a ser quinzenal, mais curta, e que eu passasse a «alternar com um homem».

Respondi que já não tinha idade nem posição para iniciar uma vida de alterne, e que crónicas quinzenais num jornal semanal não faziam sentido algum. Telefonei a José António Saraiva, perguntei-lhe se continuava interessado na minha crónica, disse-me imediatamente que sim, e que gostaria que eu começasse de imediato.

Sugeri-lhe o título genérico Fora de Órbita, disse-me que lhe parecia adequado aos textos que eu escrevia, e de que ele continuava a discordar 90% das vezes. Respondi-lhe que também eu discordava de quase tudo o que ele escrevia, e que, portanto, estava tudo bem.

Agradecer-lhe-ei a vida toda essa discórdia fiel e verdadeira e o espaço de liberdade que ela representa.

Agradeço também a todos os leitores que me acompanharam aqui no SOL, discordando ou não do que procurei ir pensando, livre e honestamente, sem pretender alcançar nenhuma espécie de verdade totalitária.

Usei sempre o método que Augusto Abelaira me ensinou, na redação de O Jornal: observar o mundo como se acabasse de aterrar de Marte e olhasse para ele pela primeira vez.

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