Miguel Poiares Maduro. “‘Há no OE o risco de governamentalização da RTP”

Está preocupado com a forma como o Orçamento põe a contribuição audiovisual nas mãos das Finanças e teme que a independência do serviço público de rádio e TV fique em causa.

Poiares Maduro passa agora a maior parte do tempo entre Florença, onde é professor no Instituto Universitário Europeu, e as funções que desempenha na FIFA, onde está desde maio à frente do  Comité de Governação. Mas o tempo que passa fora não o afasta da política nacional nem das preocupações que lhe suscitam dois dos dossiês que tutelou enquanto ministro de Passos Coelho: a RTP e os fundos europeus.

O ex-ministro responsável pelo programa Portugal 2020 acha mesmo que a forma como o trabalho do anterior Governo está a ser posto em causa neste dossiê é sintoma da «desonestidade política» do atual Executivo. E suspeita que o motivo pelo qual as verbas tardam em chegar às empresas tenha que ver com dificuldades de tesouraria dos organismos do Estado.

Um ano depois de ter saído do Governo e estando a maior parte do tempo em Florença, como vê Portugal agora?

Infelizmente, com algum pessimismo. Portugal perdeu um ano. Quando o Governo a que eu pertenci terminou, o país estava claramente numa trajetória de recuperação económica e infelizmente no último ano houve uma perda de confiança grande que afetou muito investimento e a credibilidade internacional de Portugal.

Quando houve os acordos à esquerda disse que se tratava apenas de oportunismo político. Continua a achar que esta solução de Governo não tem um projeto?

Este Governo e sobretudo este primeiro-ministro elevaram o oportunismo político a princípio da ação política. É ter o poder como finalidade em si mesmo, não como um meio para a melhoria das condições de vida dos portugueses com sustentabilidade.

Tem havido uma troca de acusações entre PS e PSD sobre o atraso nos fundos comunitários. Já teve a tutela dessa área. Como explica o que se está a passar?

É um bom exemplo da desonestidade política do atual primeiro-ministro. As pessoas provavelmente recordam-se de que ele disse que não iria haver execução de fundos no nosso último ano de Governo. Quase ninguém reparou no dr. Mário Centeno quando, confrontado com a queda de investimento, veio dizer que isso se devia à circunstância de a execução dos fundos em 2015 ter sido bastante superior à deste ano. Ou seja, veio rebater aquilo que o primeiro-ministro tem vindo a dizer. 

Não havia um problema de execução em 2015?

Portugal era o país com a melhor execução do QREN de todos os estados membros – ou um dos dois melhores, às vezes alternávamos com a Polónia -, foi o primeiro país a iniciar e a receber pagamentos no quadro do Portugal 2020. A execução do Portugal 2020 no primeiro ano, comparada com o mesmo ano do QREN, foi mais do dobro: no QREN foi 1,9% com um Governo PS, no nosso ano foi de 4,5%. O volume de verbas colocadas a concurso esteve próximo dos 8 mil milhões no primeiro ano, com mais de 4 mil milhões atribuídos. Portanto, não havia nenhum problema de execução. O que temos de ter em conta é que no primeiro ano os pagamentos vão sendo feitos à medida que os projetos vão sendo executados. 

Estava-se então numa fase de concursos…

Num primeiro ano de um quadro financeiro não se atira o dinheiro de um helicóptero. Abrem-se concursos, selecionam-se projetos. Nós abrimos um volume enorme de concursos, aproximadamente 600.

Por incompetência do Governo neste dossiê?

Não sei se é incompetência ou não. Sei que o reconhecimento do dr. Mário Centeno de que a execução de fundos foi maior em 2015 do que em 2016 tem uma explicação fácil: os constrangimentos orçamentais que o Governo tem enfrentado este ano fazem com que não haja dinheiro para a contrapartida nacional. Para haver investimento dos fundos, o Estado tem de entrar com uma parte, que é uma parte pequena, mas tem de entrar. Este Governo, como apostou sobretudo na despesa corrente, ficou sem dinheiro para dar a contrapartida dos fundos europeus.

São as famosas cativações que estão a bloquear os fundos?

Provavelmente. Não tenho dados suficientes, mas diria que sim. Houve também alterações ao nível do processo de gestão. Tínhamos tomado uma decisão para os pagamentos às empresas serem muito mais rápidos que era fazer com que não tivessem de passar por organismos intermédios. Ou seja, a agência dos fundos paga diretamente às empresas. No passado pagava, por exemplo, ao IAPMEI, ao Turismo de Portugal, que por sua vez transferiam para as empresas. Quando saímos do Governo, a Agência estava a pagar em 24 ou 48 horas às empresas. Este Governo veio mudar essa regra. Provavelmente, devido às dificuldades orçamentais dos organismos. Provavelmente, os fundos europeus estão a servir para esses organismos lidarem com dificuldades de caixa que podem ter.

O dinheiro que devia estar a chegar às empresas está a colmatar despesas de funcionamento de organismos do Estado?

É a única explicação que eu encontro para o Governo ter eliminado uma regra que permitia o pagamento direto da Agência às empresas, passando esse pagamento de novo a ser feito para organismos intermédios do Estado. Por que é que é necessário esse intermediário? Não é. 

As questões dos fundos cruzam-se com o processo de sanções que ainda está em aberto. Esta Europa tem de ser reformada?

Esta Europa tem de ser reformada e tem problemas sérios, incluindo na forma como lidou com a crise económica e financeira. O Governo a que eu pertenci fez propostas de reforma importantes da zona euro, de criação de mecanismos que ajudassem a que os custos sociais do ajustamento não fossem tão graves para os países que têm, como nós tínhamos, de fazer esses processos. Este Governo tem retórica, mas em termos de propostas concretas tem muito pouco. Mas temos de ter consciência de uma coisa: enquanto a União Europeia não se reforma, temos de viver com ela como ela é. E temos de nos adaptar a esses constrangimentos.

Como é que se sente quando vê o ministro das Finanças alemão a fazer apreciações políticas sobre a realidade nacional?

Acho que não é aceitável. De forma nenhuma. Qualquer Estado membro tem o direito de fazer comentários sobre as políticas dos outros estados membros, mas deve fazê-lo de forma reservada. É para isso que existem os conselhos europeus.

Não é também um reflexo da tensão entre o norte e o sul da Europa?

É, num certo sentido é uma resposta ao discurso populista que existe no sul.

Ou ao discurso populista que existe na própria Alemanha?

Também. Há um discurso populista na Alemanha e um discurso populista no sul. E o problema é que esses discursos populistas tornam muito difícil chegar a compromissos.

A Europa está cada vez mais polarizada?

Está. E o problema é que, como do ponto de vista político temos muitos atores que colocam em primeiro lugar o oportunismo político e a vantagem política imediata a nível interno, usando o confronto com a própria Europa, isso vai agravando ainda mais essas tendências populistas. Quer o sr. Schäuble quer o dr. António Costa, ao colocarem em primeiro lugar razões de oportunismo político interno face ao interesse estratégico da Europa e do seu próprio país a médio e longo prazo, estão a dificultar que se reúnam as condições para o compromisso que a Europa tem de fazer para ser reformada.

Não me ocorre nenhum líder europeu que esteja a fazer o contrário. Há alianças estratégicas, mas acima de tudo há tensão na Europa…

Porque quase todos estão a demonstrar uma cedência muito grande ao populismo. Os partidos mais populistas e mais radicais estão a capturar a agenda dos partidos mais moderados. E isso preocupa-me muito. Portugal é um caso disso mesmo. Um partido classicamente moderado, europeísta, como o PS, tem vindo a deixar que a sua agenda política seja dominada por partidos populistas e mais radicais. Temos casos disso à esquerda, em Portugal e na Grécia. À direita, na Polónia e na Hungria.

Não está a comparar os Governos húngaro e polaco ao português…

Sim, no caso da Hungria tem havido comportamentos por parte do Governo de interferência com o poder judicial e ao nível da liberdade e do pluralismo dos media extremamente preocupantes. Isso tem acontecido também na Polónia, embora de forma mais moderada. E também, embora se fale pouco nisso, na Grécia. Por exemplo, ao nível da interferência na autoridade independente dos media. Em Portugal, não estamos ainda nessa situação. Mas temos um discurso que é claramente populista. Temos a comunicação política como elemento central da estratégia económica e orçamental de um país. E isso é uma forma de manipulação política que é extremamente grave. Agora, não temos ainda interferências no poder judicial ou nos media semelhantes às desses países. 

Mas espera que venhamos a ter?

Há uma norma neste Orçamento que me preocupa muito, que é uma regressão na independência do serviço público de rádio e televisão. O Conselho Geral Independente da RTP já manifestou essa preocupação. A CAV (Contribuição Audiovisual), que foi criada como forma de financiamento transparente e direto para evitar que o Governo pudesse utilizar transferências orçamentais como forma de condicionar o serviço público de rádio e televisão. E o que está previsto neste Orçamento é que a CAV passe a ser entregue ao Ministério das Finanças, que depois pode manobrar e regular esse financiamento e condicioná-lo dessa forma.

Há um risco de condicionamento da RTP?

Independentemente de o Governo pretender ou não utilizar esse instrumento de condicionamento da empresa para fins de intervenção política, a simples circunstância de na empresa se saber que isso é possível já é um condicionamento.

Há uma ameaça à independência da RTP  neste Orçamento?

Há a possibilidade de se criar um risco de governamentalização e condicionamento político da empresa.

Criou o Conselho Geral Independente (CGI) da RTP para que não houvesse uma ligação direta entre o Governo e a empresa. Esse é mesmo o modelo mais eficaz?

Continuo a achar que é o mecanismo mais eficaz. Acho que esse é o modelo melhor e que está comprovado noutros países. Agora, também temos de ter consciência de que a desgovernamentalização da RTP, a ausência de condicionamento político e o seu foco exclusivo nos objetivos estratégicos de serviço público, depende sobretudo da alteração de uma cultura institucional da empresa. Numa empresa que durante muitos anos foi politicamente condicionada continuará durante muitos anos a existir um auto condicionamento. Isso é inevitável. 

Este novo órgão não tem o problema de fazer desaparecer uma responsabilidade política direta? Não se sentiu isso com os casos das acusações feitas por Luís Marinho ou dos vencimentos da nova administração da RTP?

Eu compreendo a sua pergunta. Mas a lógica do modelo é que é positivo para o serviço público de rádio e televisão que certas questões não sejam politizadas. As questões de que falou no Reino Unido também se colocam e são discutidas pelo BBC Trust, que é o equivalente ao CGI. É melhor que essas questões não sejam politizadas. Por exemplo, na questão dos salários eu acho que a melhor forma de os definir é através de comissões independentes.

Há populismo na discussão em torno dos salários da CGD?

Quanto aos salários, não posso dizer se o valor está certo ou errado. O que quero, enquanto cidadão, é que a CGD tenha os melhores gestores possíveis ao custo mais baixo para o Estado. O que devíamos era atribuir um conjunto de critérios e depois ter uma comissão de vencimentos independente que faria essa escolha e essa negociação.

Justifica-se cortar, manter ou aumentar o financiamento da Lusa?

Depende daquilo que estiver a ser negociação no contrato de concessão. Temos de saber qual é esse contrato de concessão, quais são os objetivos que o Estado pretende da Lusa e é a essa luz que se deve depois definir a estratégia para Lusa, quer ao nível do financiamento quer eventualmente da sua estrutura acionista. Pode justificar-se ser alterada. Essa era uma matéria de que eu gostaria de ter tido tempo de tratar. Há um ponto que me parece extraordinariamente importante: a Lusa está a produzir um bem público e isso faz com que tenha de ser tratada e respeitada à luz dessa importância.

Foi muitas vezes criticado por não haver coordenação política nem comunicação política eficaz no anterior Governo…

Quando hoje se vê nesta maioria maiores descoordenações, dá-me vontade de sorrir. Eu penso que a melhor resposta que o Governo a que pertenci deu foi o resultado eleitoral obtido. Essas questões da comunicação eram muitas vezes empoladas. Sempre relativizei isso.

Qual foi a sua maior surpresa em relação ao trabalho como ministro?

A minha maior surpresa, do ponto de vista negativo, foi as políticas públicas serem pensadas, elaboradas e implementadas sem se dar grande importância ao método de elaboração dessas políticas.

Vê mérito no Simplex de Maria Manuel Leitão Marques?

Nós tínhamos também um processo de simplificação. Tem um mérito importante ao nível da comunicação política, mas seguramente que há passos positivos que têm vindo a ser dados. E há passos que tinham sido dados no nosso Governo e a ministra teve a elegância de dizer isso mesmo, que havia aspetos em que estavam a continuar políticas de simplificação que tínhamos iniciado. 

Disse muitas vezes que tinha uma carreira que era uma retaguarda. Alguma vez se sai verdadeiramente da política depois de se entrar?

Eu acho que não se deve sair da política. Eu já participava antes. Aconselhava o meu partido, era membro do PSD, mas era um membro de base… escrevia de vez em quando nos jornais. Mas tendo estado seis anos no Tribunal Supremo da União Europeia, durante esse período não tive possibilidade de ter participação política. É óbvio que tendo estado no Governo hoje tenho uma visibilidade que me permite, mesmo não estando ativamente na política, ter uma participação no espaço público – como esta entrevista, por exemplo – continuar a procurar influenciar o meu país e as políticas. E pretendo continuar a participar dessa forma. 

Como é que se fez a sua aproximação ao PSD?

Há uma questão quase familiar. Eu nasci num ambiente social-democrata, porque o meu pai era deputado e presidente de Câmara do PPD. E depois sou uma pessoa estruturalmente moderada e sempre vi o PSD com essa capacidade de ser um partido do centro, um partido moderado, com uma preocupação muito grande com o reconhecimento da liberdade das pessoas, mas também com uma preocupação social muito grande no combate à desigualdade e na promoção da mobilidade social.

Está atualmente na FIFA. Como é que a FIFA aparece no seu percurso?

Antes de ir para o Governo, tinha várias vezes sido consultado a título informal sobretudo pela UEFA relativamente a questões como as do fairplay financeiro, como jurista, porque eu era um jurista reconhecido a nível europeu. Foi a partir daí que, quando criaram um novo órgão de governo na FIFA – que faz a monitorização, a supervisão e propõe reformas ao nível do governo da FIFA -, pensaram em alguém como eu e me convidaram.

Os mundos do futebol e da política são difíceis para um académico?

Neste caso, são diferentes. Mas têm um ponto em comum: aquilo que produz mudanças duradouras em qualquer entidade são mudanças na sua cultura institucional. Essas mudanças da cultura de funcionamento, dos processos de decisão são extremamente difíceis no Estado e na FIFA. Até porque a FIFA é um bocadinho como as Nações Unidas, quem decide na FIFA são as federações nacionais de estados que correspondem às Nações Unidas. Promover essas reformas não é fácil. Mas estamos a fazê-lo. Uma das coisas que o meu comité já impôs internamente na FIFA foi precisamente a obrigatoriedade de registos de interesses.

Em que posição jogava no Naval Primeiro de Maio?

Era médio. Eu debatia com o treinador, porque o treinador queria que eu jogasse a médio-direito e eu queria jogar a médio-centro. Isto parece quase uma metáfora política, mas não é, é mesmo verdade. Aliás, tive uma questão quase de disciplina, em que ele me disciplinou e bem, porque eu não queria jogar a médio-direito.

Jogou até que idade?

Joguei só até aos 14 anos.

Perdeu-se um grande futebolista?

Não, não direi isso. Gostava de pensar que sim, mas não posso falar. Terá de perguntar ao treinador da altura.

Mas chegou a ter a ambição em miúdo de ser um craque da bola?

Acho que todos os miúdos têm essa ambição. Mas nunca pensei o meu futuro profissional em termos de ser futebolista. Até porque na minha família a tradição de jurista já vem de várias gerações. Se calhar nunca me confrontei com a necessidade de ter de decidir entre os dois. E como me lesionei e nos últimos dois meses quase não joguei… depois também tornou-se muito difícil de conciliar com os estudos, que acabaram por ser prioridade. Continuei a jogar futebol. Quase todos os dias, mas com amigos.

E se for chamado a jogar politicamente outra vez para uma equipa governativa aceita a convocatória?

Talvez mais na fase dos veteranos (risos). No imediato, não vejo isso acontecer. Mas não excluo poder voltar a uma participação política de uma forma mais ativa.