Pacheco Pereira: “Trump, de certa maneira, é um revolucionário” [vídeo]

Pacheco Pereira dá a entrevista num espaço na Ler Devagar em que se reúnem voluntários da Ephemera para trabalharem arquivos e materiais. Um projeto que tem publicado em livro, com materiais organizados do arquivo do próprio. Já existem grupos em várias cidades a tratar arquivos. A conversa tem como mote a vitória de Trump e…

Um seu antecessor de barbas garantia que a história acontecia em tragédia e repetia-se em comédia. Nós estamos, com esta eleição de Trump, numa comédia ou é para levar as coisas a sério?

É para levar a sério. Primeiro, porque não é uma repetição da história. O caso que aconteceu nos EUA não tem verdadeiro precedente. Há casos vários de populismos nos EUA, como o padre Charles E. Coughlin e outros. Há até uma tradição de populismo na América, mas aquilo que nós temos é mais do que uma repetição desses casos de populismo mais antigo.
É uma inserção num sistema político, que estava bastante estabilizado, de uma sistemática demagogia. Antes de chegar à questão do populismo, o que eu acho mais interessante é definir o que é a diferença entre democracia e demagogia. Elas são muito parecidas e há muitas coisas em comum entre as duas. O que acontece é que, hoje, há um terreno particularmente favorável ao desenvolvimento da demagogia. É evidente que há causas sociais que potenciam esse processo, mas há, digamos assim, um enorme caldo demagógico que tem muito a ver com a televisão de entretenimento, uma comunicação política no qual o elemento racional praticamente desaparece e em que o elemento ético desaparece ainda mais. Nessa comunicação apenas sobrevive aquilo que é patológico, que vem de pathos [palavra grega que significa paixão, excesso, catástrofe, passagem, passividade, sofrimento, sentimento e ligação afetiva]. Com a televisão de entretenimento e a proliferação de redes sociais, com um conhecimento da realidade que é feito por elas, criam-se condições particularmente favoráveis à demagogia. Eu não digo que foram as redes sociais e os reality shows que fizeram Trump, mas se nós olharmos para os EUA ou Portugal e perguntarmos onde se encontra o grande reservatório dessa demagogia, ela encontra-se nos tabloides, na televisão de entretenimento e nas redes sociais.

Não acha que o chamado populismo vem preencher o espaço político deixado livre devido à crise das democracias?

Ele vem preencher um vazio de representação. Um número significativo de americanos, como aconteceu também no Brexit e igualmente com franceses e portugueses, não se reconhece na representação política, em grande parte porque a representação política foi colonizada pelos interesses económicos e financeiros. Isso significa que grande parte da população não encontra representação. Isto agravou-se depois da crise económica de 2008 e fez com que se tivesse como efeito colateral o aumento do desemprego e o crescimento da pobreza, a perda de dignidade. Em muitos casos, não é apenas um efeito social e económico que se verifica: as pessoas sentem que viviam antes com maior dignidade do que vivem hoje. Os empregos que tinham eram ocupações nas indústrias e comunidades que tinham sentido; hoje, estes empregos foram substituídos por outros tipos de trabalho. Quer se queira quer não, há uma sensação de perda. E essa sensação de perda não é traduzida no sistema político, porque ele responde apenas às necessidades do sistema económico e financeiro, o que leva as pessoas a sentirem-se órfãs. Tornam-se um pasto muito significativo para movimentos do tipo populista. E estes movimentos encontram no sistema comunicacional popular um enorme amplificador que depois se traduz em resultados eleitorais.

Há um artigo da revista “New Left” que faz uma história do populismo e revela que há uma tradição popular nos EUA nesse sentido, que abrange desde a existência do Partido do Povo dos EUA até discursos do Roosevelt e o seu New Deal.
E que o populismo, ao contrário de hoje, era uma palavra considerada positiva. Este populismo de Trump tem alguma coisa que ver com isso?

Num certo sentido, sim, veja-se o caso do padre Charles E. Coughlin, conhecido como o padre da rádio, que produziu um grande movimento populista dos anos 40: ele falava contra a banca e a favor dos trabalhadores. Falava em assuntos que são, em grande parte, de reivindicação social muito significativa. O Huey Pierce Long, que foi governador do Luisiana, falava também em nome dos mais pobres e mais excluídos. O populismo não se dirige nem à esquerda nem à direita: ele é transversal. Nesse sentido, tem causas de direita e de esquerda, algumas muito reacionárias. É um erro considerar que Trump é um conservador, daí o seu conflito com o Partido Republicano. Trump, de um certo ponto de vista, é um revolucionário, se utilizarmos a palavra no sentido de que ele cria um ponto sem retorno, de que antes dele era uma coisa e depois será uma completamente diferente. Este ponto sem retorno é criado pelo seu aspeto revolucionário. O que vai acontecer depois, não sabemos. Mas há coisas que sabemos que não são exequíveis num país democrático: não é possível, em democracia, deportar dois milhões de pessoas, não há nenhum exemplo, desde a ii Guerra Mundial, de uma deportação organizada e em massa de pessoas. Isso foi feito com os judeus pelos nazis, e na União Soviética estalinista com algumas populações [por exemplo, os tártaros da Crimeia]. Não é possível deportar sem campos de concentração, sem tornar o país num Estado policial com o reforço do aparelho de repressão e rusgas permanentes. Portanto, a proposta não é possível num Estado democrático. Mas 50 mil é possível.

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