Tabaco. O choque, o tapa e o hábito?

Será que as “imagens chocantes” que chegaram aos maços de tabaco em Portugal por alturas de maio chocam mesmo?

Uma mulher a cuspir sangue, pulmões com tumores malignos, homens deitados em camas de hospital ou gargantas e bocas destruídas pelo vício do tabaco: há seis meses, os fumadores passaram a ter direito a fotografias chocantes sempre que compram um maço de tabaco. Tudo porque a lei determinou que, a partir daí, as embalagens fossem acompanhadas por “advertências de saúde combinadas”, com a ajuda de frases e imagens a cores.

As imagens descritas são apenas alguns dos exemplos que surgem numa das “três séries de imagens (cada série com 14 imagens) que devem constar dos maços de cigarros e embalagens de tabaco de enrolar”, explicou ao i a Tabaqueira, subsidiária da Philip Morris International em Portugal. As imagens têm, além disso, de estar devidamente acompanhadas por frases como “Fumar mata”, “Fumar provoca 9 em cada 10 cancros do pulmão”, “Fumar provoca cancro da boca e da garganta” ou “Fumar provoca acidentes vasculares cerebrais e incapacidades”.

O i andou pelas bombas de gasolina e tabacarias de Lisboa para perceber o efeito das imagens ao fim de meio ano.

 

“Quero o bebé” As embalagens com fotografia de um bebé é uma das que os clientes preferem. E pedem-na nas bombas de serviço ou nas papelarias que não dispõem de máquinas automáticas.

“Quando dou o [maço] da garganta, do pé ou do pulmão, muitas vezes pedem–me para trocar”, afirmou ao i um dos funcionários da Casa Havaneza, tabacaria do Centro Comercial Amoreiras, em Lisboa. “Há quem peça para trocar e pedem-me se pode ser pelo bebé [com a chupeta]”, adiantou uma funcionária de uma bomba de gasolina em Cascais. Na bomba de Oeiras, essa opção não é possível “dada a máquina automática”, mas “já aconteceu se apanham maços cá fora”, atira a senhora atrás do balcão.

A Tabaqueira, confrontada com o “fenómeno” e com a possibilidade de serem impressas certas imagens em maior número relativamente às restantes, clarificou: “A rotação das imagens verifica–se numa base anual. Sendo assim, as imagens de uma série são substituídas pelas imagens da série seguinte, e as imagens constantes de cada série deverão ser apresentadas em número igual em cada marca de produtos de tabaco.”

Perto do centro de Lisboa, um senhor – já de idade – está sentado do lado de dentro do quiosque e não tem dúvidas: “Isso [as imagens] já não faz impressão a ninguém.” “No início ainda vendia uns tapa- -maços, umas caixas de silicone, mas já pedem pouco”, acrescentou. E sabe o porquê. “O tabaco já é caro, não querem estar a gastar mais dinheiro com isso”, concluiu.

Maria, estudante universitária, tem 20 anos – é fumadora há dois – e parece partilhar a mesma opinião. “No início fez- -me imensa confusão e lembro-me que arranjei uma caixa, do género de uma cigarreira, que tinha lá para casa, da altura em que escondia os maços de tabaco dos meus pais”, contou entre sorrisos, apesar de ter começado a fumar numa idade em que, por lei, já é permitido. Agora os pais já sabem “e não podem dizer grande coisa, sempre fumaram”. Aproveita para esclarecer que já não usa caixa porque “já se habituou à ideia”.

O mesmo não se passa com o Manuel, mas por outras razões. Aos 56 anos, já tentou deixar de fumar “uma dezena de vezes por questões de saúde”, mas ainda não conseguiu. A cigarreira anda no bolso “há mais de dez anos” e não voltou ao dia-a-dia “pelas imagens chocantes”. “É uma questão de estilo”, brincou.

No entanto, há casas que acreditam que a venda de invólucros para os maços possa ter “aumentado ligeiramente” quando as imagens apareceram.

Não se afugentam fumadores Afinal, as imagens conseguiram ou não o tratamento de choque pretendido? De acordo com o pediatra Mário Cordeiro, as imagens, “num primeiro momento, chocam, mas rapidamente as pessoas se habituam e banalizam exatamente o que não deve ser banalizado”, além de evidenciar que “nem todos os fumadores terão cancro”. “Temos de ser verdadeiros, rigorosos e éticos, e dizer mentiras é errado. Estar escrito que ‘os fumadores morrem precocemente’ é mentira. Alguns, porventura a maioria, mas não ‘os’. Se eu generalizar e tornar a frase sentenciosa, então alguém argumentará com um tio que fumou que nem uma chaminé e viveu até aos 100 anos. Se eu disser a verdade, ‘os fumadores têm mais probabilidades de morrer prematuramente’, então estaremos a dizer a verdade e a instilar a dúvida que deve estar na cabeça dos jovens quando da sua tomada de decisão de fumar ou não”, explicou ao i.

Um dos objetivos das imagens também passa precisamente pelo combate ao vício dos mais jovens e por uma tentativa de contrariar o início desse mesmo vício. Mário Cordeiro acredita que “as crianças pequenas podem assustar-se ao pensar que os pulmões dos pais são assim ou que o mano que vai nascer vai ficar deformado porque a mãe fuma, mas quando daí a anos forem confrontados com o ‘menu da vida’, que inclui tabaco, tenho sérias dúvidas que essas imagens sirvam para alguma coisa na sua decisão”.

Na perspetiva do pediatra, “não se ‘afugentam’ fumadores”. “Aliás, um fumador precisa do cigarro porque é um toxicodependente, e não será a imagem de um pulmão canceroso que o afasta dessa droga! O que se tem de fazer é ajudar, com consultas e negociação, os fumadores a fumarem menos, e, junto dos jovens, desmistificar a ideia de que fumar tem algum sentido ou traz alguma vantagem porque, curiosamente, enquanto a canábis tem efeitos positivos, como analgésico, calmante, etc., o tabaco não tem um único efeito farmacológico positivo ao estreitar as artérias ou reduzir o oxigénio”.

O pediatra defende que a consciencialização, sobretudo para os jovens, passa por alertar para os malefícios em casos imediatos, como o “mau hálito para o encontro de logo à noite ou prejudicar o jogo que tem no próximo sábado”, e não “para os cancros que podem ser de-senvolvidos daí a décadas”.

De resto, conclui que “aumentar o preço do tabaco é a melhor forma de prevenção, tal como dizem os estudos feitos em diversos países”.