Eleição é hoje. Quem quer ser bastonário dos médicos

Álvaro Beleza, Miguel Guimarães, Jorge Torgal e João França Gouveia disputam hoje a corrida à Ordem dos Médicos. Colocámos 15 perguntas aos candidatos

O que move na candidatura a bastonário e qual é o seu principal trunfo na corrida?

Álvaro Beleza (A.B.): A vontade de tornar a Ordem dos Médicos na principal entidade certificadora da Saúde em Portugal. É necessário dar início a uma mudança que coloque os médicos na liderança das unidades de saúde. 

João França Gouveia (J.F.G.): Querer contribuir para resolver os dois maiores problemas do SNS: a situação dramática e caótica, desde há longos anos, nos serviços de urgência hospitalar e o amadorismo, voluntarismo e a dependência político-partidária na gestão das unidades de saúde. Os trunfos são uma carreira médica linear como assistente graduado sénior de Medicina Interna e experiência na direção de serviços e lugares de topo na gestão de saúde, como ter sido presidente do INEM ou diretor regional da saúde da Região Autónoma dos Açores.

Jorge Torgal (J.T.): Aproximar os médicos da sua Ordem, a qual deverá liderar as grandes causas nacionais na Saúde, primordiais para promover uma medicina de excelência e ter uma intervenção enérgica, para bem da Saúde dos portugueses.

Miguel Guimarães (M.G.): A vocação cívica e o contributo que, desde os tempos de estudante, dedico à causa médica. Por outro lado, a convicção de que reúno todas as condições para o exercício do cargo, sobretudo pelo conhecimento e capacidade de intervenção.

Quais seriam as três principais medidas do seu mandato?

A.B.: Começo por referir a defesa da qualidade da medicina, fazendo com que os doentes saibam que podem confiar nos serviços que tenham o ‘selo de qualidade’ da Ordem dos Médicos. Depois, é fundamental combater para repor as carreiras médicas, um fator decisivo para o bom desempenho dos profissionais. Desenvolverei também todas as frentes de solidariedade e apoio da Ordem para com os médicos que necessitam. Ninguém pode ser deixado para trás, sejam novos ou velhos.

J.F.G.: Para acabar com os caos nas urgências, é preciso reconhecer em Portugal a especialidade de medicina de emergência, abrindo o caminho para que o exercício nas urgências seja feito exclusivamente por médicos com esta especialidade. São também precisas equipas fixas e impedir a permanência nas urgências de qualquer doente com critério de internamento. Para combater o voluntarismo na gestão, defendo que a gestão dos hospitais e centros de saúde deve ser contratualizada. Para promover um exercício profissional exemplar, garantia a total isenção dos médicos perante fornecedores de medicamentos e material de uso clínico, não aceitando qualquer benefício.

J.T.: Assegurar a independência da Ordem face aos Governos, aos partidos políticos, às confissões religiosas e aos agentes económicos, entenda-se indústria farmacêutica, bancos, companhias de seguros; Investir na formação dos médicos, na pré-graduada, na reforma do internato médico e implementação de programas de formação contínua e recertificação do médico. Reforçar também a sua formação integral, promovendo debates alargados sobre questões éticas, deontológicas, no âmbito cultural, económico e de gestão; em terceiro lugar, promover o desenvolvimento do SNS e dignificar as carreiras médicas.

M.G.: A ter de escolher seriam o aumento do tempo para a relação médico-doente através da definição dos tempos mínimos de consulta por especialidade; a criação de apoios à formação médica especializada e contínua; e o combate à fraude das terapêuticas não-convencionais. 

Continuaria a exercer? Porquê?

A.B.: Sim, porque vejo o exercício do cargo como limitado no tempo. Não fiz nem farei carreira na Ordem. Se, como espero, for eleito bastonário, sei desde a primeira hora que tenho um horizonte temporalmente limitado. Ora, um médico que esteja três anos sem exercer, desatualiza-se. Gosto de ser médico e quero sê-lo antes, durante e depois de ser Bastonário.

J.F.G.: Sim. Porque gosto e porque necessito financeiramente dos respetivos proventos.

J.T.: Dedicarei, no mínimo, 40 horas semanais à presidência da Ordem. A minha condição de professor catedrático, com obrigação de uma escassa atividade letiva, permite esta opção.

M.G.: Sim, ainda que muito condicionado. Gosto de ser médico e de tratar os doentes. 

A legalização da eutanásia será um dos primeiros temas quentes do futuro bastonário. É a favor ou contra? Sendo legalizada, estaria disposto a acorrer a esse desejo final de um doente?

A.B.: Ao bastonário cabe cumprir e fazer cumprir o Código Deontológico, o qual proíbe a ajuda ao suicídio, a eutanásia, tal como o encarniçamento terapêutico (art. 65.º). Enquanto cidadão, e marcado pela experiência de ter tido um cancro, assinei o manifesto em defesa da morte medicamente assistida. Achei que era uma forma de ajudar a promover uma discussão ampla sobre o fim da vida, discussão que a sociedade ainda não fez.

J.F.G.: Sou pessoalmente contra a eutanásia. Defendo os cuidados em fim de vida conforme o que está consensualizado entre nós: recorrer aos meios de alívio sintomático, aos cuidados paliativos e evitar o encarniçamento terapêutico. Se fosse chamado a acorrer a esse desejo, invocaria a figura de objetor de consciência.

Jorge Torgal: Entendo que deve ser despenalizada a morte assistida, sendo signatário da petição em discussão na Assembleia da República. Considero que se trata de uma questão de cidadania, que integra os direitos constitucionais decorrentes da atual Constituição da República 

M.G.: Contra. Defendo o Código Deontológico, que condena a eutanásia e a distanásia. Aceito a discussão e compreendo-a, mas penso que em matéria de fim de vida há questões prioritárias como os cuidados paliativos e o testamento vital.

O que continuam a fazer bem os médicos e o que têm feito pior?

A.B.: Continuam a prestar bons cuidados e a garantir um serviço público de saúde que ainda é de qualidade. Fazem menos bem a passagem da mensagem para o exterior. A medicina portuguesa tem inúmeros médicos que são eleitos para cargos mundiais importantes e isso é muito pouco conhecido do público em geral. 

J.F.G.: Continuam a fazer bem medicina, fazem mal em gerir hospitais e centros de saúde.

J.T.: A saúde dos portugueses, seja qual for o prisma de observação – classificação global da Organização Mundial de Saúde, mortalidade infantil, mortalidade materna, taxa de cobertura vacinal, transplantes, aumento de esperança de vida – está sempre nas 25 melhores do mundo. Isto deve-se aos profissionais de saúde, em particular, como é evidente, aos médicos. Mas os médicos portugueses não tiveram capacidade para evitarem a recente degradação do SNS, que sofreu uma preocupante saída de profissionais, e de proporem uma nova filosofia organizacional.

M.G.: Os médicos portugueses são de uma qualidade e competência inquestionável. Basta ver a procura que existe no estrangeiro. O que têm de melhor é isso mesmo: a competência técnica. O que têm feito pior, fruto da enorme pressão a que estão sujeitos, é ir contemporizando com condições de trabalho inaceitáveis.

É utente do SNS? Temos ideia que muitos médicos não usam o serviço público ou têm sempre ‘cunhas’, não conhecendo na pele as dificuldades dos doentes no sistema.

Álvaro Beleza: Muita gente tem a noção falsa de que os médicos não se tratam no SNS. Quando tive um cancro há 11 anos fui tratado, muito bem tratado, no IPO, e lá continuo a ser seguido nas consultas de controlo

J.F.G.: Exatamente: se os médicos ou os seus familiares fossem obrigados a recorrer aos serviços de urgência hospitalar e às listas de espera das consultas e dos meios complementares de diagnóstico, há muito que os problemas do SNS estariam resolvidos.

J.T.: Felizmente saudável, fui retirado da lista do meu médico de medicina geral e familiar, por não frequência. Num episódio agudo que me afetou, há anos, recorri ao SNS. Sendo administrador, não executivo de um hospital do setor social, é lá que faço a vigilância de rotina da minha saúde.

M.G.: Sou utente do SNS. As ‘cunhas’ que refere, na minha opinião, não são ‘cunhas’ e acontecem no âmbito de qualquer área profissional.

O SNS está a ficar desnatado, só para pobres e remediados? É algo que o preocupe?

A.B.: O SNS está preocupantemente sub-financiado e mal gerido, factos que muito me preocupam.

J.F.G.: Claro.

J.T.: A afirmação é exagerada, não corresponde à realidade. A generalidade das patologias mais graves – oncológicas, cardíacas, transplantes, doenças raras -, que exigem saberes altamente diferenciados, tecnologias e equipamentos avançados, são tratadas no SNS, que tem cobertura nacional. A qualidade mantém-se, malgrado a falta dos profissionais, que por razões remuneratórias e de idade, deixaram o SNS.

M.G.: O SNS está, de facto, numa situação crítica, a que chamo de plano inclinado e que decorre de uma grande desorçamentação. Preocupa-me muito, também pelas consequências negativas que daí resultam para a evolução da medicina portuguesa.

Qual é o problema da saúde no país que não tem sido suficientemente discutido?

A.B.: Creio que o problema da saúde não é de diagnóstico. Já todas as hipóteses de diagnóstico foram feitas, já se discutiram diagnósticos diferenciais. Falta menos conversa e mais ação.

J.F.G.: O modelo de gestão das unidades de saúde – centros de saúde e hospitais. Tem de se generalizar a sua contratualização, por concurso público, com entidades com efetiva competência e inerente responsabilidade (civil) financeira.

J.T.: O do modelo de organização do SNS.

M.G.: Os problemas relacionados com a promoção da saúde e a prevenção da doença, como por exemplo a diabetes. E a reforma do serviço de urgência. 

A bastonária dos enfermeiros disse recentemente que há serviços no SNS que são armazéns de pessoas e que a dignidade está há muito no lixo. Concorda?

A.B.: Não devo comentar as afirmações dos bastonários das outras Ordens, que respeito. Creio que basta ouvir as notícias e ver as reportagens das urgências para perceber que os doentes não recebem o acolhimento digno a que têm direito.

J.F.G.: Basta permanecer umas horas numa urgência hospitalar para o constatar.

J.T.: Não concordo e não comento.

M.G.: Em alguns casos, que não gostaria de especificar, é o que acontece.

A sustentabilidade do sistema de saúde público é uma utopia ou será possível? Se governasse por onde começava?

A.B.: Um sistema público de saúde digno não pode ser uma utopia, isso representaria o grau zero do Estado Social. Não interessa a minha posição ‘se…’. Acho que qualquer governo de um Portugal moderno e solidário tem que garantir que nenhum concidadão fica excluído do acesso à saúde.

J.F.G.: A garantia da sustentabilidade do SNS passa por uma gestão competente das suas unidades. Mas o papel do Estado deve ser definir as regras do seu funcionamento; elaborar cadernos de encargos; abrir concurso público para a sua gestão; controlar a sua atividade e garantir as acessibilidades a custos suportáveis.

J.T.: Considero que é possível, necessária e viável. A generalidade dos portugueses, em particular os que a ele recorrem, considera-o um dos valores centrais do progresso social do país nos últimos 40 anos. A questão do modelo organizacional, o papel participativo dos profissionais de saúde, liderados pelos médicos, nesse modelo, a dignificação da carreiras, devem ser objeto de uma discussão alargada, que eu, se bastonário, me proponho liderar. 

M.G.: A sustentabilidade é possível e obrigatória. Começava por apostar na promoção da saúde das pessoas e nas medidas de prevenção da doença, centrando a Saúde no seu percurso de vida. De resto, é obrigatório intervir nos cuidados primários e no modelo funcional dos hospitais, promovendo a sua cooperação e organização, e reformando o serviço de urgência. 

Já esteve em alguma urgência este inverno? Antevê uma rutura nos serviços? 

A.B.: Já estive ‘de urgência’ e ‘na urgência’ várias vezes este Inverno. A gripe, no Inverno, é tão previsível como o calor e os fogos no verão. A rutura, se acontecer, será por deficiente planeamento.

J.F.G.: O ‘filme’ é rigorosamente igual todos os anos: a ‘desgraça’ começa pontualmente no dia 26 de Dezembro e só acaba no final de Fevereiro – com gripe ou sem gripe. Para além deste ‘pico’ a Urgência hospitalar vive em caos permanente… todo o ano.

J.T.: Estive em várias urgências hospitalares nos últimos dois meses. O hospitais têm feito um esforço imenso para dar resposta de qualidade a uma enorme pressão de doentes. Doentes que não procuram consultas mas que muitas vezes precisam de internamento – a maioria muito idosos, com múltiplas patologias, em geral vivendo em condições de muito baixa qualidade, residencial, nutricional e sem apoio social, muitos institucionalizados e que acorrem aos hospitais por terem descompensado. São a prova de que há que mudar todo o quadro assistencial aos idosos que vivem em más condições, de rever a assistência médica aos institucionalizados, de rever os atos médicos possíveis nos cuidados continuados, de aumentar a sua a capacidade a par com uma reorganização das urgências e centralidade aos cuidados de saúde primários. Só assim é possível equilibrar o SNS. 

M.G.: Estive em várias urgências, a trabalhar e em visita de campanha. É um fenómeno previsível, que se repete todos os anos. A rutura nos serviços já aconteceu e pode agravar-se. As razões são diversas e vale a pena serem discutidas. 

Fez a vacina da gripe? Porque é que tantos profissionais de saúde não a fazem, como é recomendado?

A.B.: Não fiz. Quando tinha pensado fazer tive um episódio febril, que me obrigou a adiar. Muitos médicos estão tão assoberbados com trabalho e tão cansados que se esquecem de si mesmos.

J.F.G.: Vacino-me todos os anos. Não se vacinam porque não seguem as recomendações científicas.

J.T.: ‘Casa de ferreiro …’

M.G.: Não. Possivelmente porque, nos seus casos concretos, têm dúvidas relativas à sua eficácia e aos efeitos laterais.

Que nota de 0 a 20, à Marcelo Rebelo de Sousa, dá ao ministro da Saúde? Que t.p.c lhe passaria?

A.B.: Só dou notas aos meus alunos. Como bastonário desejo vir a ter uma apreciação positiva do seu desempenho. Caso contrário, seria grave e caso para despedimento… Não como TPC, mas como recomendação, diria que ouça e respeite a voz da Ordem dos Médicos.

J.F.G.: Classificar o ministro só no final do seu mandato. TPC: reunir-se mensalmente com o bastonário dos Médicos, para que se obtenham consensos perduráveis, independentemente dos protagonistas de ocasião.

J.T.: Um bastonário deve ser um parceiro, quiçá muito crítico, de qualquer ministro da Saúde, a quem deve propor soluções – discutidas de antemão, amplamente e de forma transparente pela generalidade dos médicos. Há que construir uma medicina melhor, objetivo partilhado, seguramente, por qualquer Ministro da Saúde.

Miguel Guimarães: Dou nota 12 ao ministro da Saúde. Recomendaria que fizesse visitas não programadas aos hospitais públicos

Adalberto Campos Fernandes diz que não será pela saúde que o diabo aparecerá. Está certo?

A.B.: Não acredito na existência do Diabo.

João França Gouveia: O ‘diabo’ anda à solta no SNS …há muitos anos!

J.T.: Não comento.

M.G.: Talvez esteja certo, mas se o sistema aguenta é graças ao valor e capacidade de resiliência dos profissionais que estão a trabalhar acima do limite. 

«Um médico que só saiba de Medicina, nem de Medicina sabe», disse o médico Abel Salazar. Que experiência (livro, filme, viagem ou vivência) fora da Medicina mais o marcou?

A.B.: O nascimento do meu filho.

J.F.G.: Respondo com outras frases. «Cultura é o que fica depois de tudo o que se esqueceu» (André Malraux); «A verdade é um erro à espera de vez» (Vergílio Ferreira); «Para que o mal triunfe, basta que os homens de bem nada façam» (Séneca/Burke).

J.T.: Escrevi nos jornais portugueses, sobre a responsabilidade objetiva do Estado, sobre a legalização da prostituição, sobre a segregação dos doentes com sida, sobre a despenalização do consumos de drogas, escrevi em programas de peças de teatro e de exposições de pintura; falei e trabalhei na Europa Ocidental, Central e de Leste, em África, na América Latina, no Extremo Oriente, sempre numa perspetiva em que as componentes social e cultural estiveram sempre, obrigatoriamente, presentes. Faltar-me-ão certamente muitos atributos, mas como médico, dermatologista e professor de saúde pública, nunca me ative apenas à prática clínica, aquilo a que esse vulto Abel Salazar chamava a Medicina.

M.G.: Livro: James Joyce, Ulisses. Disco: Miles Davis, Kind of Blue. Filme: David Lean, Lawrence da Arábia. Viagem: Ilhas Galápagos (Equador). Vivência: Conhecer as magníficas paisagens dos Açores.